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domingo, 23 de agosto de 2020

Importam-se de acordar para a realidade do país?

Caros Marcelo Rebelo de Sousa, Eduardo Ferro Rodrigues, António Costa e Rui Rio, importam-se de acordar rapidamente para a realidade social, económica e financeira do país e tomar consciência da tragédia que nos atingiu?

Só tomando consciência da realidade que nos cerca é que poderemos começar a tomar medidas para a melhorar. Se nem sequer somos capazes de reconhecer a natureza da dimensão dos problemas que temos, não podemos esperar que se resolvam de forma sustentável e duradoura.

Os problemas que temos medem-se pela fome que já se vive em Portugal. Se não fossem as ajudas do Banco Alimentar, das misericórdias, das IPSS, das igrejas com destaque para a Católica, das câmaras municipais, das juntas de freguesia, dos autarcas e dos milhares de voluntários distribuidores e dadores, a situação social já se teria tornado explosiva em muitas cidades, vilas e bairros do país.

Os problemas que temos medem-se pelo elevado valor da ajuda pública (com dinheiro que o Estado não tem e para isso pede emprestado nos mercados financeiros), para compor o rendimento das famílias que tiveram de ficar em lay-off ou já perderam os empregos, bem como pelas moratórias aos impostos e às prestações aos bancos, que as famílias teriam de estar a pagar e que em breve irão voltar a pagar, juntamente com a parte acumulada desses pagamentos diferidos.

Os problemas que temos medem-se pelo índice de risco de falência de centenas de milhares de empresas nacionais, até agora mantidas com o regime de lay-off simplificado e pelo programa que o substitui, bem como pelas moratórias fiscais e bancárias de que ainda estão a beneficiar, mas que acabam em breve.

Os problemas que temos medem-se pelo gigantesco volume dos empréstimos bancários garantidos a 80 ou 90 por cento pelo Estado, que mais cedo ou mais tarde vão desencadear o acionamento dessas garantias por parte dos bancos, fazendo subir ainda mais a já descomunal dívida pública portuguesa.

Os problemas que temos medem-se pelo ritmo crescente de entrega de casas aos bancos por parte de milhares de famílias que já não conseguem suportar as responsabilidades dos empréstimos. E pelo número crescente de empresas que já registam incidentes de crédito, desde as mais pequenas falhas de pagamentos até à declaração de impossibilidade total de assumir as suas responsabilidades financeiras.

Os problemas que temos medem-se pelos alertas de cada vez mais especialistas sobre uma nova e profunda crise bancária que se está a formar em Portugal e por toda a Europa, podendo levar à acumulação de mais de 800 mil milhões de euros de crédito malparado, a curto, médio prazo.

O problema maior do país cabe numa frase simples: desapareceu 10 por cento do nosso PIB anual em 2020, e não há maneira de o voltar a recuperar por completo em 2021. A maior parte deste PIB era composto por exportações sob a forma de serviços de turismo prestados a estrangeiros, bem como transporte aéreo, restauração, organização de conferências e demais atividades associadas.

Esta parte do PIB desapareceu e não volta tão cedo, porque o mais certo é não ser possível acabar com os novos surtos e termos de enfrentar uma segunda vaga da pandemia antes de estar disponível uma vacina ou um novo tratamento rápido e eficaz.

Em consequência, aumentaram os apoios sociais distribuídos pelo Estado e baixaram drasticamente as receitas em impostos e contribuições para a segurança social. Em espelho invertido com o PIB, o défice das contas do Estado inchou que nem um balão e está prestes a rebentar numa nova crise de financiamento público.

Numa altura em que é urgente discutir formas de cooperação institucional e definir o que queremos coletivamente para recompor o perfil da nossa economia, chamando à mesma mesa Patrões, Sindicatos, Governo, Oposição, Deputados, Partidos, Universidades e Especialistas, para encarar o problema de frente, o que vemos?

Vemos uma taxa de desemprego artificialmente diminuída por regras contabilísticas inovadoras, enquanto baixa a população ativa e sobe exponencialmente a população inativa;

Vemos o saldo das contas externas do país a degradar-se rapidamente com a manutenção de um volume elevado de importações, enquanto as exportações caíram a pique.

Vemos vários setores da agricultura, agro-indústria, indústria transformadora e serviços, com estrutura empresarial pequena e média, a serem ultrapassados no acesso a fundos estruturais e a créditos bancários pelos grandes projetos da economia não transacionável e do compadrio com a política.

Vemos um plano para “salvar” a economia nacional encomendado a um especialista que pisca o olho à esquerda e à direita, ao setor publico e ao privado, quer apostar nas empresas do regime concorrencial, mas acaba por destacar a importância das grandes obras públicas, ferrovias, portos e plataformas logísticas;

Vemos um plano estratégico que, por ser tão abrangente e ambicioso, cria as próprias condições para nunca ser aplicado.

E vemos um Presidente da República, um Presidente do Parlamento, um primeiro-ministro, um ministro das Finanças e um líder da oposição aparentemente alheados da gravidade deste momento importantíssimo da nossa vida coletiva. Sendo que o advérbio de modo “aparentemente” comporta um sério problema nacional: seja real ou não, este aparente alheamento dos responsáveis políticos contagiou a sociedade portuguesa e eliminou o sentido de urgência em encontrar soluções rápidas para a crise social, económica e financeira em que estamos mergulhados.

Enquanto os mais altos responsáveis da nação não acordarem deste alheamento, vamos todos continuar adormecidos, deixando escoar o tempo mais precioso para preparar o futuro do país.

Apostar em produção nacional para substituir importações, desde bens alimentares a produtos de higiene, limpeza e segurança sanitária, equipamentos domésticos, equipamentos médicos, medicamentos e afins;

Apostar em mais exportações, desde mais produtos agroalimentares a moldes, máquinas e equipamentos industriais, componentes variados para a indústria, programas de software, assistência técnica, apoio administrativo e os mais variados serviços de trabalho à distância para outros países e mesmo outros continentes.

O que é necessário e urgente é um plano para substituir rapidamente o PIB que desapareceu e para compensar o gigantesco desacerto entre as despesas e as receitas do Estado.

2020 já vai ser um ano perdido. Não podemos entrar em 2021 sem termos definido a estratégia para colmatar dois défices gigantes: o das contas externas e o das contas públicas. Temos menos de quatro meses para delinear esse plano e para o pôr em marcha.

Uma urgência que não é compatível com a atitude pública visível dos mais altos responsáveis do país.

 José Gomes Ferreira

Memórias de um outro Portugal....

 

MEMÓRIAS de um outro PORTUGAL

Corria o ano da graça de 1962 (já lá vai meio século). A Embaixada de Portugal em Washington recebe pela mala diplomática um cheque de 3 milhões de dólares (em termos atuais algo parecido com 50 milhões) com instruções para o encaminhar ao State Department para pagamento da primeira tranche do empréstimo feito pelos EUA a Portugal, ao abrigo do Plano Marshall.

O embaixador incumbiu-me (ao tempo era eu primeiro secretário da Embaixada) dessa missão.

Aberto o expediente, estabeleci contacto telefónico com a desk portuguesa, pedi para ser recebido e, solicitado, disse ao que ia. O colega americano ficou algo perturbado e, contra o costume, pediu tempo para responder. Recebeu-me nessa tarde, no final do expediente. Disse-me que certamente havia um mal-entendido da parte do governo português. Nada havia ficado estabelecido quanto ao pagamento do empréstimo e não seria aquele o momento adequado para criar precedentes ou estabelecer doutrina na matéria. Aconselhou a devolver o cheque a Lisboa, sugerindo que o mesmo fosse depositado numa conta a abrir para o efeito num Banco português, até que algo fosse decidido sobre o destino a dar a tal dinheiro. De qualquer maneira, o dinheiro ficaria em Portugal. Não estava previsto o seu regresso aos EUA.

Transmiti imediatamente esta posição a Lisboa, pensando que a notícia seria bem recebida, sobretudo num altura em que o Tesouro Português estava a braços com os custos da guerra em África. Pensei mal. A resposta veio imediata e chispava lume. Não posso garantir a esta distância a exatidão dos termos mas era algo do tipo: "Pague já e exija recibo". Voltei à desk e comuniquei a posição de Lisboa.

Lançada estava a confusão no Foggy Bottom: - não havia precedentes, nunca ninguém tinha pago empréstimos do Plano Marshall; muitos consideravam que empréstimo, no caso, era mera descrição; nem o State Department, nem qualquer outro órgão federal, estava autorizado a receber verbas provenientes de amortizações deste tipo. O colega americano ainda balbuciou uma sugestão de alteração da posição de Lisboa mas fiz-lhe ver que não era alternativa a considerar. A decisão do governo português era irrevogável.

Reuniram-se então os cérebros da task force que estabelecia as práticas a seguir em casos sem precedentes e concluíram que o Secretário de Estado - ao tempo Dean Rusk - teria que pedir autorização ao Congresso para receber o pagamento português. E assim foi feito. Quando o pedido chegou ao Congresso atingiu implicitamente as mesas dos correspondentes dos meios de comunicação e fez manchete nos principais jornais. "Portugal, o país mais pequeno da Europa, faz questão de pagar o empréstimo do Plano Marshall"; "Salazar não quer ficar a dever ao tio Sam" e outros títulos do mesmo teor anunciavam aos leitores americanos que na Europa havia um país (Portugal) que respeitava os seus compromissos.

Anos mais tarde conheci o Dr. Aureliano Felismino, Diretor-Geral perpétuo da Contabilidade Pública durante o salazarismo (e autor de umas famosas circulares conhecidas ao tempo por "Ordenações Felismínicas" as quais produziam mais efeito do que os decretos do governo). Aproveitei para lhe perguntar por que razão fizemos tanta questão de pagar o empréstimo que mais ninguém pagou. Respondeu-me empertigado: - "Um país pequeno só tem uma maneira de se fazer respeitar: é nada dever a quem quer que seja".

Lembrei-me desta gente e destas máximas quando há dias vi na televisão o nosso Presidente da República a ser enxovalhado pública e grosseiramente pelo seu congénere checo a propósito de dívidas acumuladas.

Eu ainda me lembro de tais coisas, mas a grande maioria dos Portugueses de hoje nem esse consolo tem.


Estoril, 18 de Abril de 2010 - Luís Soares de Oliveira