Era madrugada e Trump tuítou:
"Apesar da constante covfefe negativa da imprensa." Claro, ele
escreveu em inglês: "Despite the constant negative press covfefe." Ou
como se falava nas ruas da minha infância: "Você pensa qu"eu sou covfefe
ou quê?.." Enfim, Donald John Trump, espécie de esperantista ao contrário,
inventou uma palavra para em todo mundo, não só com este ou aquele povo,
ninguém a entender.
Se querem que vos diga, há aqui uma coerência tremenda.
Trump já deu cabo do acordo
internacional sobre clima, iniciou o desmantelamento da NATO e promete vir a
tramar a ONU. Agora, na esteira dessas cruzadas, criou a palavra covfefe.
Enfim, Trump armou-se em Jeová. Se estão lembrados, nos velhos tempos do
Génesis, andavam os homens a falar uma só língua. Então, com soberba,
puseram-se a construir uma torre galgando até aos céus.
Ora, lá de cima, Jeová não gostou. Deus
armou-se em condómino que não quer hóspedes intrusivos e pôs estes a falar
várias línguas. Criou-se uma confusão, a Torre de Babel, ainda incompleta, foi
abandonada e os homens partiram pelo mundo fora, separados por diferentes
falares. Cada povo com a sua língua... Pois Trump foi mais ambicioso do que
Jeová: mesmo entre os americanos ninguém entendeu o que covfefe queria dizer.
Por causa da Bíblia, Babel passou a
significar confusão. Graças ao Twitter, covfefe, ninguém sabendo o que
significa, passou a saber-se que é mais do que confusão, é um mistério. Eleito
com o slogan, sem sentido mas claro, Make America Great Again, Trump saltou
agora para Make Covfefe Great Again, o que, não se sabendo o que é, não deixa
de ser assustador. Como acontece com todos taumaturgos - embora ele seja de uma
subespécie, ele é um traumaturgo, caiu de cabeça em criança sobre uma
superfície dura -, também Trump merece que lhe façam a exegese e a hermenêutica
dos textos, sobretudo os de 140 caracteres.
A melhor explicação dada para a agora
famigerada palavra é "coverage". No teclado, as letras desta estão
próximas de covfefe. E as oito batidas de uma terem passado para sete pode
explicar-se pelo adiantado da hora em que o tweet foi feito, já de madrugada.
Nessa hipótese, Trump terá pensado: "Apesar da constante cobertura
negativa da imprensa." E dedilhou: "Apesar da constante covfefe
negativa da imprensa."
Porém, o porta-voz da Casa Branca Sean
Spicer apressou-se a desmentir essa tese do dedilhar equivocado. Perguntado se
covfefe era engano ao teclar, Spicer garantiu que não. Disse: "Penso que o
presidente e um número restrito de pessoas sabem exatamente o que quer dizer."
Em linguagem política chama-se a isto controlo dos danos. Já é público e
notório que em Trump muitas coisas não funcionam bem. Mas entre a cabeça e os
dedos não era destes que se suspeitava, era da outra que já se dava como caso
perdido. Portanto, a mensagem do porta--voz foi para tranquilizar o mundo: os
dedos do 45.º presidente dos EUA funcionam bem. Uf!, podíamos suspirar de
alívio, atendendo que é com os dedos que se prime o botão atómico. Tendo-nos
apaziguado um temor, teve de se confessar o lugar da falência: a cabeça de
Trump é que de vez em quando acredita que a palavra covfefe não só tem
significado, como ele sabe "exatamente" qual é.
O mundo ficou, então, com novo problema
nos braços. Segundo Sean Spicer, não só Trump mas também outras pessoas, embora
em número restrito, sabiam "exatamente" o que quer dizer covfefe. A
coisa espalhava-se! Agora que o serviço público de saúde americano apanhou um
rombo com o combate ao Obamacare, calhava mal aparecer um surto epidémico,
apesar de (só por enquanto, teme-se) confinado à Casa Branca.
No atual mandato de Trump, já havia
sintomas de sequestro do léxico, erupções de uma doença degenerativa das
palavras. Como "amazing", que em inglês pode quer dizer muitas coisas
- incrível, maravilhoso, surpreendente, fantástico, fabuloso e outros
espetaculares significados, até "lindo!". Em qualquer caso, palavra
inapropriada para definir uma visita de Estado ao Museu do Holocausto, em
Jerusalém. Ainda por cima quando deixada escrita, "so amazing", no livro
de honra do museu... Mas, até agora, as palavras existiam, eram só
impropriamente usadas. Com covfefe saltou-se para um patamar superior da
incomunicação. Era aqui que eu queria chegar: e se estamos perante não de um
tropeço do teclar nem de um linguajar imaturo, mas de um salto linguístico da
humanidade?
Segundo o reputado especialista Noam
Chomsky, a linguagem surgiu-nos assim: "(...) Uma mutação aleatória
ocorreu, talvez depois de uma chuva de raios cósmicos estranhos. O cérebro foi
reorganizado, implantando assim um órgão da linguagem num cérebro
primata." Lá muito para trás da Pré-História... Ora bem, e se além da
pancada na cabeça que o Donald sofreu em catraio, ele recebeu agora uma chuva
de raios cósmicos no cocuruto? E, sabendo que o local da aterragem era frágil,
essa chuva cósmica consistiu, numa madrugada recente, numa só palavra metida no
seu cérebro primata? Covfefe...
Estou a ver Donald John Trump a
convencer-se de que ele foi escolhido para criar uma nova língua. E isso
explica (só isso, aliás) a notícia de ontem: os Estados Unidos desligam-se do
Acordo de Paris sobre o clima. É certo que seria preciso mudar a política
mundial de décadas, que trouxe o aquecimento global, o degelo das calotes
polares, a subida dos mares e o futuro desaparecimento de ilhas e litorais...
Mas mudar essa política, agora, seria talvez arriscar a que Trump deixasse de
ser bombardeado por mais vocabulário vindo em chuvas cósmicas.
Havia que escolher, ou as calotes
polares ou deixarmos covfefe a falar sozinho. Donald Trump decidiu. Sigamo-lo
no Twitter para dar conta de novas maravilhas.
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