Não encontrei alguém das minhas relações pessoais, dos analistas que leio, dos comentadores que oiço, capaz de, ao debruçar-se sobre os resultados das recentes eleições autárquicas, evitar o aparte, a boca ou o desabafo: "Como é possível Isaltino Morais ganhar as eleições em Oeiras? Como é que o concelho mais letrado do país elege um corrupto? O que é que este escândalo diz de nós?"
O pensamento mais elaborado que ouvi sobre a matéria foi uma piada, gira: "Os portugueses acreditam nas capacidades de reinserção social do sistema prisional e, por isso, elegeram Isaltino."
E no domingo o El País titulava, em tom ironicamente arrogante e paternalista: "Isaltino, o presidente corrupto que os portugueses adoram." Nessa peça, o articulista rematava: "Longe de Oeiras, nos mesmos dias das eleições, o partido que governa Moçambique, ex-colónia portuguesa, a Frelimo, dizia que os corruptos do partido não deviam ser ostracizados, muito pelo contrário, era necessário reintegrá-los. Isaltino é o grande integrado de Portugal."
(Esta visão, que vinda de fora adquire um tom duplamente neocolonialista, esquece o facto de a corrupção de políticos no ativo ser um problema enorme em Espanha, pelo que soa a pedrada lançada por quem tem imensos telhados de vidro... mas adiante, que não é esse o foco deste texto.)
Uma reportagem de Fernanda Câncio, aqui no DN, tentou encontrar explicação para o fenómeno desta reeleição em Oeiras. No local, a ouvir munícipes, vários deles renitentes a confessar o voto no autarca ex-presidiário, a jornalista registou estas frases: "as pessoas não sabem ao certo porque ele foi condenado"; "acho que é culpado, mas foi condenado e já pagou"; "quem não gosta de Isaltino é porque não vive aqui"; "foi um excecional presidente, sem dúvida alguma, fez muito pelo concelho"; "fez crescer Oeiras e ele teve também de crescer".
Portanto, a tese prevalecente, seja entre analistas encartados seja entre ignaros cidadãos, resume-se mais ou menos a uma única frase: "O povo de Oeiras é estúpido." Pois eu, desculpem lá o mau jeito, recuso essa explicação.
Quarenta anos de políticos, académicos e jornalistas a instruírem a populaça sobre a inevitabilidade estrutural dos alegados malefícios do papel do Estado na vida dos indivíduos; sobre a inutilidade dos impostos; sobre a incompetência dos funcionários públicos; sobre a fatalidade do fim da Segurança Social; sobre a corrupção inata nas autarquias locais; sobre o privado ser sempre melhor do que o público; não criaram a mentalidade propícia a um voto que não desvaloriza quem usou ilegalmente o Estado e com isso, "fez crescer Oeiras" e, por isso, ganhou um direito moral e "teve também de crescer"?
Quarenta anos dos mesmos políticos, académicos e jornalistas a metralharem a populaça sobre a suposta e generalizada corrupção dos políticos; sobre a "normalidade" de quem está no Estado poder usá-lo a seu favor em negócios com construtores civis, com a banca ou com fundos comunitários; sobre a muita preguiça e o elevado salário dos deputados; sobre o valor do governo sem ideologia, obediente ao santo pragmatismo, não criaram razões para os eleitores de Oeiras, descrentes, escolherem quem, afinal, "foi um excecional presidente"?
Quarenta anos de promoção cultural junto da populaça, pelas mesmas personagens, do conceito básico "uma imagem vale mais do que mil palavras", não criaram a sensibilidade que leva os eleitores de Oeiras a ver a saída da cadeia de Isaltino, muito mais magro e com umas roupas recolhidas dentro de um saco para lixo preto, como um momento de redenção, o espoletar do "acho que é culpado, mas foi condenado e já pagou" que desculpou tanto voto em Oeiras?
Vinte cinco anos de um sistema judiciário, cheio de doutores, magistrados e juízes, a industriar a populaça, através dos jornais, graças à utilização perversa do segredo de justiça, que os políticos e os famosos suspeitos não são suspeitos, são culpados, decida o que decidir o tribunal, não criaram as condições para que, no fim, em exemplos como o de Isaltino "as pessoas não saibam ao certo porque ele foi condenado"?
Vinte e cinco anos de arrastamento de casos na justiça: fax de Macau, Casa Pia, Operação Furacão, Freeport, Oliveira e Costa, Duarte Lima, Dias Loureiro, José Sócrates, Armando Vara, Ricardo Salgado, Miguel Macedo, o próprio Isaltino, sei lá que mais, não industriaram já a populaça de que a própria justiça é culpada de ineficácia, falta de rigor, incoerência e que é capaz de condenar só para salvar a sua própria reputação? Isto não legitima quem, em Oeiras, acredite que Isaltino Morais é injustiçado?
E, finalmente, face à qualidade dos candidatos apresentados pelos partidos nacionais e dos candidatos nascidos localmente, graças a uma parva lei das candidaturas independentes que, como era óbvio, promove sobretudo o caciquismo e degrada ainda mais a imagem dos partidos, não é legítimo um cidadão de Oeiras pensar "quem não gosta de Isaltino é porque não vive aqui"?
A eleição de Isaltino é terrível porque demonstra cabalmente que as elites portuguesas, essas sim, foram estúpidas e cavaram, nestes mais de 40 anos de democracia, lenta mas persistentemente, a sua própria sepultura.
Sem comentários:
Enviar um comentário