Acabo de acordar, são 7h15. Estou pronto para uma jornada de
zelo pelos meus dados pessoais. Quem me despertou foi o telemóvel. Neste
contacto matinal com a tecnologia, sinto-me imediatamente vigiado. O
capitalismo selvagem é tudo menos tonto, e a aplicação que me acorda não
desperdiçará a colossal oportunidade de arquivar as horas a que me levanto.
Tomo um banho, o sabonete está quase no fim. Penso no dia em
que um chip não haverá de remediar tais situações,
encomendando automaticamente o produto em falta. Então, até as nossas abluções
matinais entregaremos ao conhecimento público – com maior ou menor detalhe,
conforme a precisão do localizador do chip.
Minha mulher está a bordo de um avião, a caminho de outro
hemisfério. Recorro novamente ao smartphone, que me informa a
latitude e longitude em que ela está, a velocidade da aeronave, seu rumo e
altitude. A app me hipnotiza, não a consigo largar, até que
ouço mentalmente uma ordem conjugal: “Para de bisbilhotar e põe-te a mexer!”
Meto a cafeteira no lume, são 8:15. Quando estiver em pleno
a Internet das Coisas – um estado de dependência perante as máquinas com o qual
alguém irá ganhar dinheiro –, um computador tratará de pôr o café em marcha, de
ligar a máquina da loiça, de recolher os estores, de apagar as luzes, de
trancar as portas, de abrir o carro. E tudo isso será comunicado a alguém,
algures, capaz de “melhor a nossa experiência”.
Agora trato dos pratos. Abro a torneira quente e um
magnífico contador digital avisa-me que estou a consumir energia. Examino-o:
neste dia, já gastei 1,2 quilowatts-hora de eletricidade de 15,54
quilowatts-hora de gás. Não me diz absolutamente nada, mas ao fornecedor de
energia sim. Com um ano de contador inteligente, a empresa sabe quanto tempo
passo no banho, a que horas saio ou chego à casa, quando meto a roupa para
lavar, se ligo ou não o aquecimento.
São 9:00 e, já na minha secretária, abro uma carta que
chegara no dia anterior. É de uma universidade onde dei uma única aula.
Pagaram-me quase o preço de uma bifana e ficaram com minha ficha completa:
nome, morada, data de nascimento, documento de identificação, número de
segurança social, foto tipo passe.
A manhã prossegue em intermináveis telefonemas e mensagens.
Utilizo todos os modos gratuitos para me comunicar com o mundo: Skype,
WhatsApp, Facetime, iMessage, Facebook, Twitter, Linkedin. Garantem-me todos, a
pés juntos, que é tudo seguro, que o que eu disser ficará entre mim e meu
interlocutor. Desculpem, mas não acredito.
Às 10:30, já estou plenamente fundido com o computador,
somos um organismo só. Constato que me esqueci de fazer um backup do
meu trabalho do dia anterior. A aplicação que uso para tal avisa que está
desatualizada. Ao contrário dos humanos, a tecnologia exibe essa virtude: não
se importa de anunciar que já passou do prazo.
Procedo à instalação da nova versão e penetro num território
obscuro, onde prospera a congénita ineficácia das mensagens de alerta. A
primeira que surge no ecrã pergunta-me: “Autoriza que este ficheiro faça
alterações no seu computador?”. Não tenho escolha, preciso daquela aplicação.
Sinto-me como um enfermo agonizante à entrada do bloco operatório, e um
funcionário hospitalar com uma caneta não mão a perguntar-me: “Autoriza que o
médico faça alterações no seu abdómen?”
Segue-se um momento literário: o contrato de licença. Sou
logo avisado de que devo ler tudo, do princípio ao fim. Mas o índice é de uma
impenetrabilidade marmórea: A) GNU General Public License; B) cURL License; C)
libshh2 License; D) OpenSSL and SSLeay Licence. Passo direto ao botão “ok” e
aceito tudo de olhos fechados. Não faço a menor ideia do que estou a consentir.
São 13:00 e acaba de ser divulgado um relatório
internacional de que estava à espera. Tento descarregá-lo. É preciso antes
fazer um registo. Pedem-me o nome, endereço de e-mail, dados
profissionais. Crio uma palavra-passe ao calhas, da qual já não me lembrarei
amanhã. Sei, no entanto, que a senha estará lá, algures nos interstícios da
Internet, pronta a ser pirateada.
Almoço à frente do computador e aproveito para ver meu
correio eletrónico. Está inundado de pedidos de consentimento explícito. O quê?
Sites de encontros? Não, é o novo regulamento europeu sobre a proteção de
dados, que obriga as empresas a nos pedirem autorização para fazer o que sempre
fizeram sem nos pedir autorização: recolher, armazenar e processar fragmentos
das nossas vidas privadas na expectativa de os monetizar.
Examino alguns pedidos, resolvo investigar o de alguém que
não me conhece mas me trata por tu: Mark Zuckerberg. No labirinto de
explicações pelo qual sou conduzido, fico a saber, por exemplo, que o Facebook
recolhe, junto ao que chama de “parceiros”, informações sobre minhas
atividades online e offline, como “comprar um
capacete numa loja de bicicletas”. Imagino-me na loja, a tentar exercer o
direito à minha privacidade cefálica: “Desculpe, meu amigo, mas está proibido
de dizer ao Zuckerberg que comprei um capacete viking com
tranças e um bigode do Asterix”.
Já são quase três da tarde e não faço outra coisa senão
consentir, aceitar, autorizar já nem sei o quê. Perco a paciência com a
clássica mensagem “este site utiliza cookies para melhorar a
sua experiência”, carrego automaticamente em sim a tudo. A nova lei de Bruxelas
não conta, por certo, com o efeito da banalidade.
Preciso enviar um e-mail importante, são 16:15. Começo a
escrever o endereço do recipiente, aparecem vários contactos com nomes
semelhantes, pessoas com quem um dia já me comuniquei. Por engano, encaminho a
mensagem a quem não devia. Em desespero, envio o clássico e-mail corretivo,
pedindo para que a mensagem anterior seja desconsiderada – uma tentativa
patética, que mais não faz do que aguçar a coscuvilhice alheia.
Meu trabalho complica-se. Tenho uma série de documentos em
holandês para ler, recorro a um tradutor automático. Espantosa aplicação, mas
vejo que tem um “R” – sim, sou eu mesmo – lá num canto. Afinal, está conectada
à minha conta de e-mail. E a minha conta de e-mail à minha cloud. E
a minha cloud aos meus documentos. E os meus documentos à
minha existência.
Começo a ficar paranoico. O relógio bate seis da tarde, uma
notificação surge no computador e em dois telefones ao mesmo tempo: no dia
seguinte, a esta hora, tenho uma consulta. Quantas pessoas mais não saberão
disso? Já denoto a sintomatologia dos espiados, uma certa claustrofobia
digital. Preciso sair, afastar-me da net, apanhar ar. Vou ao supermercado, sou
recebido por uma câmara de vigilância bem à entrada. “Tem cartão de cliente?”,
perguntam-me na caixa. Sim, está aqui, mas me arrependo de o dar. Remotamente,
computadores analisam minha conduta comercial e concluem que desta vez não
levei dois pacotes de sumo de laranja.
Volto para casa, o computador adormeceu e não quer acordar.
Provido de vontade própria, resolve proceder a uma atualização. Demora uma
eternidade, dez minutos depois ainda está a cinco por cento, sabe-se lá o que
estarão a fazer na máquina. No final, sou requerido a autorizar tudo e mais
alguma coisa: que eu seja localizado, que minha voz seja reconhecida, que minha
câmara seja utilizada, que os dados da minha conta, meu histórico de navegação,
meus contactos, meu calendário, minhas mensagens, minhas fotos, meus vídeos,
que tudo seja partilhado.
O dia está a chegar ao fim, ainda tenho muito trabalho à
frente. Hora ideal para me chatearem. Toca o telefone. O número é do Japão, mas
estou em Londres. “Boa noite, temos a informação de que esteve envolvido num
acidente rodoviário. Correto?”. Não, incorreto, deixem-me em paz. O correio
eletrónico apita. É uma mensagem da Itália: Si prega di visitare il
link di mantutenzione qui sotto… Vejo a palavra link e
apago imediatamente.
Consulto um site de informação sobre cibersegurança e, a
meio da leitura, surge um aviso a identificar meu IP e onde estou. “Se nós
conseguimos saber isto, os outros sites por onde andas também conseguem”,
alerta-me a mensagem, antes de oferecer um serviço qualquer.
Dói-me a cabeça e acredito, já em delírio, que tenho um
vírus informático no cérebro. Mastigo qualquer coisa e passo a vista nos
jornais na Internet. Passo mal dado, pois sei que estão a registar as notícias
que consulto.
O dia não está a correr bem, vou encerrar a loja por hoje.
Abro um jogo de paciência, para espairecer. Há muitos anos que não o faço, mas
está tudo lá: quantas vezes joguei, quantas vitórias, qual o tempo médio. Quero
que me esqueçam, mas não encontro maneira de apagar aquele rasto. Em vez disso,
o jogo espeta-me com publicidade. Imagino que seja direcionada às minhas
necessidades, ao que julgam que preciso, com base em dados pessoais que me
terão usurpado. Para meu terror, o anúncio é de uma agência funerária.
É demais. Maldita a hora em que me dispus a monitorizar quem
anda a recolher minha vida pessoal. Se bem que, depois de tudo o que escrevi,
meu dia de hoje está todo aqui. Tanta preocupação, e afinal sou eu próprio a
dar a ficha toda. Dá próxima, é melhor ficar calado.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido
pelo autor
A
privacidade e a segurança “online”estiveram
em debate no Fronteiras XXI no dia 25 de Julho na RTP3
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