Agências de rating
Cúmplices do colapso que afundou o coração do sistema capitalista mundial e afectou milhões de pessoas, as agências de rating pareciam ter caído em desgraça. Ingenuidade. A crise da dívida soberana da zona euro mostrou de novo o seu poder. Depois da falha continuada e grosseira das suas avaliações aos grandes clientes, procuram reconstruir a credibilidade à custa de Estados penalizados por governos pouco zelosos dos dinheiros públicos e supervisores pouco diligentes. Irlanda, Grécia e Portugal sentem na pele os efeitos. Moody’s, Standard & Poor’s e Fitch, donas de 95% do mercado, ganham dinheiro como não acontecia desde 2007. As tentativas de regular o sector não se sentem. A China desconfia e responde com a Dagong.
Nos EUA, as comissões que investigam o papel das raters fazem relatórios bombásticos. A 14 de Março, o democrata Carl Levin anuncia: "As agências foram influenciadas por empresas de Wall Street para dar boas
avaliações a créditos hipotecários e fizeram isso por dinheiro."Para Jacinto Nunes, "as raters têm interesses indirectos e, quando atacam Portugal, estão a atacar a moeda única". Joe Berardo concorda: "Como querem manipular [o euro], atacam os países mais fracos, dando-lhes bad ratings. Agora é Portugal, depois será a Espanha e já se fala da Itália." Os erros cometidos ao longo de uma década colocaram, em 2008, as três grandes empresas de notação financeira - Standard & Poor’s, Fitch e Moody’s - no centro de um longo debate que se reacendeu em 2010 e continua agitado.
Os chamados "PIGS", grupo formado por Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha, passaram a ser o alvo das três grandes firmas que controlam 95% do mercado de rating. As revisões em baixa da notação dos países sucedem-se, os seus problemas de anos ampliam-se e o Parlamento Europeu acaba de decretar a criação de uma agência de notação de crédito europeia para promover a concorrência no sector. Mas ainda é cedo para se saber se a legislação criada há um ano para enquadrar a actividade "é suficiente" para evitar conflitos de interesses e metodologias de trabalho erradas, disse ao PÚBLICO Karel Lannoo, presidente do Centro de Estudos de Política Europeia. O PÚBLICO enviou perguntas para os responsáveis dos departamentos europeus da S&P, Moody’s e Fitch. Frank Gill, da S&P, respondeu que a decisão de colocar os emitentes (os avaliados) a pagar as notas de rating permite que possam ser disponibilizadas a todo o mercado, o que não aconteceria, se o cliente fosse o investidor. E negou que as três agências actuassem em "espírito de manada", quase em simultâneo e com opiniões idênticas, como aconteceu na primeira semana de Abril em Portugal:
"Cada uma de nós tem os seus critérios e as notas que emitimos são frequentemente diferentes. Por exemplo, há três ratings soberanos diferentes para a Itália e Grécia." David Riley, da Fitch, não respondeu,
mas disponibilizou documentação, e Anthony Thomas, da Moody's, ignorou as questões. Falaram ainda com o PÚBLICO sobre a crise financeira Jacinto Nunes, Augusto Mateus, Campos e Cunha, Ricardo Salgado, Carlos Tavares, João Costa Pinto, Joe Berardo, Diogo Teixeira, Carlos Monjardino, Manuel Ferreira da Silva e José Reis. Para compreender a crescente visibilidade das agências e o seu papel na ampliação da crise da dívida soberana da zona euro é necessário retroceder a 2000, quando a febre das dotcom fez desaparecer milhares de empresas e provocou perdas superiores a cinco mil milhões de euros.
Uma bagatela face aos prejuízos do subprime. Com a democratização da Internet apareceram novas formas de vender crédito. À distância de um clique passou a ser possível obter financiamento a preços reduzidos.
2001
A ilusão que acabou Para desviar a atenção dos investidores do mercado tecnológico para o imobiliário, o presidente da Reserva Federal (FED), Alan Greenspan, adopta, em 2001, uma estratégia progressiva de baixas taxas de juro. As grandes casas de investimento aproveitam: ampliam as linhas de financiamento e afrouxam nas exigências de garantias na concessão de crédito. O caminho, sabemos bem hoje, é perigoso.
O acesso generalizado de cidadãos ao financiamento fácil gera procura e sustenta a valorização das propriedades. Há a ilusão de que todos saem a ganhar. Nos EUA, o Tesouro promove o crédito, subsidiando linhas à Fannie Mae e à Freddie Mac (duas empresas públicas convertidas em privadas nos anos 1960), cuja actividade é comprar hipotecas aos bancos. O sistema financeiro empacota títulos de crédito de alta rentabilidade e dissemina-os pelos mercados internacionais em fundos de investimento.Estava de pé o sistema de empréstimos de alto risco (subprime): as taxas de juro, na altura baixas, eram fixadas quando a dívida era liquidada. Assim que sobem os juros, os devedores com menor poder de compra (os "ninjas", "no income, no job or asset", sem rendimento, sem trabalho nem activos) deixam de honrar os compromissos.Para se financiarem em larga escala no curto prazo, as empresas de Wall Street socorrem-se de operações repos (reverse repo) que, no final da década, serão alvo de muitas críticas, pois eram usadas para, em alguns casos, ludibriar os supervisores. Numa operação repo, o activo é adquirido pelo banco, que se compromete a vendê-lo em data futura mediante juros pré-negociados.
Final de 2001, Texas: com dívidas de 17,6 mil milhões de euros e mais de 30 mil trabalhadores, a Enron declara-se insolvente, após revelar, com o ok da consultora Arthur Andersen, lucros artificiais. Cinco dias antes da falência, as recomendações de investimento na Enron atribuídas pelas agências de notação são inequívocas: strong buy ou buy. Logo aí surgem vozes a questionar a utilidade das raters. Mas a culpa não está apenas deste lado. Os analistas financeiros, que produzem conselhos de investimento, também falham redondamente, pois, ao colocarem alto o preço da Enron, enviam estímulos aos gestores. Para reforçar o controlo e a transparência do sistema financeiro, as autoridades contra-atacam e, em Junho de 2002, divulgam a Lei Sarbanes-Oxley. Mas haverá quem duvide que a ganância faz parte da natureza humana? Novos escândalos iriam rebentar: Parmalat, Tyco, Delphi, Worldcom. Os bancos Bank of America, Merrill Lynch, Morgan Stanley, Citigroup e Deutsche Bank são acusados de colocar no mercado acções da Parmalat, quando já sabiam que a empresa tinha problemas de solvência. Mas também de transferirem para terceiros os riscos que tinham em carteira.
No dia em que o grupo italiano se declara insolvente, em 2003, a S&P dá-lhe o grau máximo: investment grade.
O início do caos. Para 80% dos inquiridos pela Association for Financial Professionals, em Março de 2005, a Securities and Exchange Commission (SEC) não é suficientemente rigorosa no acompanhamento à Moody's, S&P e Fitch. Já 59% dos 230 associados aconselham a SEC a actuar com mão forte sobre
as agências, enquanto a maioria acusa o sector de falta de concorrência, de ter padrões pouco exigentes e actuar num quadro de conflito de interesses. E, de facto, Eric Mindich, a quem a Casa Branca pede, em 2007, que estude medidas para "regulamentar" as agências, concluirá que a Moody's, a S&P e a Fitch tinham actuado, ao longo da década, em "conflito de interesse", pois conferiam ratings, quase sempre favoráveis, a títulos de dívida (subprime) em cujo desenvolvimento colaboraram como consultoras. Ao mesmo tempo, eram pagas pelos bancos de investimento que organizavam, emitiam e vendiam os produtos estruturados (que provocaram os problemas). Quando os preços das casas caíram, os juros subiram e os credores deixaram de receber, as agências garantiram aos clientes boas classificações. Ao apresentar as suas conclusões, Mindich, ele próprio um gestor financeiro, confessa que suspeitava que os elevados honorários cobrados pelas agências aos bancos emissores dos títulos ajudaram a preservar os ratings dos produtos "ninja". Nesse ano, José Sócrates é nomeado primeiro-ministro e convida para tutelar as Finanças Luís Campos e Cunha. A 9 de Junho de 2005, na Assembleia da República, o ministro apresenta o PEC, para quatro anos e meio: "Acabou o tempo das hesitações e dos truques contabilísticos, [a não redução do défice vai] comprometer o futuro da economia e do Estado social." Mas entre 2000 e 2005, a dívida dispara de 53% para 67% do PIB. Preocupações sérias, avisos ignorados.
Daí a poucos meses Campos e Cunha demite-se. Seis anos passaram entretanto e Campos e Cunha explica: "Um carro com os pneus carecas pode ir a 200 à hora e nada lhe acontecer. Mas um dia chove e há um acidente. Ia acontecer, não sabíamos era quando, nem como." Esperava que chocasse tão cedo? "Não sabia ao certo. Mas admitia que os problemas [défice orçamental e excesso de endividamento] surgissem por volta de 2013, 2014 com os encargos das parcerias público-privadas, isto, se nada fosse feito."
Na Primavera, o agora director-geral do FMI para a Europa, António Borges, defende o PEC de Campos e Cunha e acusa Sócrates de estar "distante da realidade" e do modo de actuação dos mercados. Há que consolidar as contas públicas e deixar cair o TGV e o novo aeroporto, aconselha.
Os primeiros seis anos da década são gloriosos para o sistema financeiro que gira em roda livre. "As grandes casas de investimentos anglosaxónicas entraram numa coboiada que permitiu a alavancagem que deu esta bolha imobiliária que estourou em 2008. Estava tudo na euforia e ninguém ouvia ninguém", lembra Jacinto Nunes, ex-ministro das Finanças e ex-governador do Banco de Portugal. Com efeito, em 2001, num artigo de opinião, Nunes alerta para os riscos de se ter eliminado, em 1999, a lei Glass-Steagall, criada após a Grande Depressão, e que proibia os bancos de retalho dos EUA de fazerem investimentos de risco.
"Perigosos" sem regulação A Casa Branca não está isenta de culpas. Depois de a Administração Clinton
ter revogado a lei Glass-Steagall e legislado a proibir a criação de regulamentação ao sector bancário, o republicano George Bush adoptou novas medidas para facilitar a venda do sector de produtos derivados. O
antigo CEO da Societé Générale, Daniel Bouton, lamentou recentemente que, "num sector ultra-regulado como é o bancário, apenas 1% [os bancos de investimentos], os mais perigosos, sejam os únicos sem regulação". Manuel Ferreira da Silva, à frente do BPI Investimentos, diz que "durante muito tempo havia a ideia de que, no mundo globalizado, a desregulamentação permitia níveis de crescimento económico grandes e uma distribuição do risco mais eficiente".
Em 2006, Bush convida o presidente da Goldman Sachs, Henry Paulson, para a pasta do Tesouro. Para aceitar, Paulson vende as suas acções da instituição por 342 milhões de euros, isentas de impostos. Jacinto Nunes lembra "que Paulson chegou à Casa Branca vindo da Goldman Sachs, de onde era proveniente Robert Rubin, secretário do Tesouro de Clinton, que revogou a lei Glass-Steagall, e criou a lei que proibia
a regulamentação financeira. E Mario Draghi [referido para substituir Trichet no BCE] foi director-geral da Goldman para a Europa". Também Borges passou pela Goldman Sachs, onde foi vice-presidente. Na city nova-iorquina, os anos pós-crise são implacáveis para algumas grandes casas financeiras, que desaparecem. Não será o caso da Goldman Sachs, que se mantém acima da linha de água. Com o tempo, torna-se num dos gigantes dos fundos de risco (hedge fund) apostando em CDO (obrigações de dívida colaterizada) e CDS (credit default swap). No CDO, um investidor toma um empréstimo e dá como garantia um activo e quem faz o crédito vende o direito de receber os pagamentos de juros no futuro; o CDS é um produto negociado no mercado de obrigações para especular, caso uma empresa entre em incumprimento (risco de crédito). Hoje o banco está a ser julgado por fraude por, em 2006 e 2007, ter "enganado deliberadamente" clientes sobre a qualidade de um CDO ligado a hipotecas subprime.
2006
Dinheiro barato e dívidas. O nível de endividamento das casas de investimento americanas ultrapassa, nalguns casos, 30 vezes o valor real da instituição (as dívidas servem para garantir novas dívidas). Os bancos estão no mercado a jogar com o seu próprio capital. Nada que impeça os banqueiros de sonharem bem alto, revelando lucros anuais de 22,5 mil milhões de euros, qualquer coisa como 20% do PIB português. "A partir de certa altura, [os grandes bancos de investimento anglosaxónicos] passaram a ter como actividade principal, geradora de resultados, o trading. E no caso do subprime, embora o trespassassem para terceiros [o banco emprestava o dinheiro, mas não corria o risco de não receber, pois transferira a dívida para terceiros em todo o mundo], guardavam algum em carteira", explica Ferreira da Silva, do BPI Investimento. A força motriz da expansão financeira é o dinheiro barato e as más decisões
de investimento. Uma gigantesca bolha especulativa forma-se. O que fazem as agências? Nesse ano, 80% dos títulos de subprime recebem nota máxima (Aaa/AAA), a mesma das obrigações do tesouro americano.
Moody's, S&P e Fitch avaliam o restante positivamente. Sentindo-se, porventura, cercado por um aumento da inflação, Ben Bernanke, que assumira funções em Fevereiro (depois de 18 anos de presidência
de Greenspan), anuncia que vai subir os juros. Os bens imobiliários, sobre os quais tinha sido concedido crédito em larga escala, desvalorizam-se e a dívida das famílias passa a ser muito superior ao valor do bem adquirido com crédito.
Em 2007, o sistema financeiro anglo-saxónico rodopia sobre vulcões. Nos meios bancários, circulam rumores de que algo muito grave se passa no sistema, mas não há confirmações. Por essa altura, o ex-director da Moody's Eric Kolchinsky envia um email aos superiores e às autoridades a alertar para os problemas associados aos títulos de subprime, mas o aviso rende-lhe a suspensão de funções. Mais tarde, ao depor no Senado, Kolchinsky conta que recusou pressões dos superiores para dar boas notas a produtos contaminados.A hipocrisia financeira deixou indignados alguns membros da comissão.Num tom inocente, Richard Breeden, presidente da SEC entre 1989 e 1993, explica: "Todas as pessoas no mundo sabiam que a bolha das hipotecas estava lá. E isso não estava escondido, ninguém pode dizer que os reguladores fizeram o seu trabalho de casa. Não se pode fazer triliões de dólares em hipotecas sem que não se aperceba."Talvez o quadro até fosse pior do que Breeden imaginava. O subprime americano, que no início da década se previa ser de um bilião, terá crescido 40 vezes entre 2001 e 2006. Os 28,22 biliões de euros eram comparáveis com os 14,11 biliões de capitalização accionista novaiorquina e com os 3,1 biliões de activos investidos no mercado de dívida pública americana. E em 2007 um terço das hipotecas já estava em incumprimento."Ausência de escrúpulos", "negligência" dos supervisores, "desregulamentação" e fraudes são algumas das conclusões a que chegam os investigadores da Financial Crisis Inquiry Commission.Mais e mais sinais de alerta.A crise hipotecária espalha-se pelo planeta. No Verão de 2007, as autoridadesbritânicas começam também a enviar sinais de alerta aos mercados:os títulos tidos como seguros talvez estejam contaminados. O banco central previne que o sistema financeiro pode entrar em colapso, "dado o seu envolvimento em empréstimos altamente alavancados, como os investimentos em hedge funds".
Agosto de 2007 é a data em que a crise é detonada. "O primeiro sinal de que algo se passava surgiu no início do mês, quando, em França, o BNP Paribas suspendeu o pagamento dos resgates de três fundos, tidos como de risco diminuto", conta Ferreira da Silva, do BPI. "A partir daí, comecei a acompanhar de perto a situação em termos internacionais, mas nunca com a ideia de que os problemas iriam assumir estas proporções. Sempre pensei que a situação fosse ultrapassada."Na city nova-iorquina, os investidores são confrontados com o fracasso de outros dois fundos do Bear Stearns, o quinto maior banco de investimento,
e com o pedido de moratória por parte do American Home Mortgage, o décimo banco hipotecário.No estado do Ohio, o procurador-geral Marc Dann anuncia que tinha investigado 180 mil empréstimos para compra de casa e conclui que a Moody's, S&P e Fitch alimentaram a crise hipotecária, ao desvalorizarem nas suas análises os riscos associados ao subprime. A Moody's reage: "As nossas análises são objectivas." Às críticas Moody's, S&P e Fitch fazem vista grossa. Nessa altura, 40% das suas receitas anuais já provêm da análise dos produtos de subprime. Depois de ter elevado 17 vezes os juros para combater a inflação, a Fed chega a Julho de 2007 com a taxa básica (que afecta o crédito bancário a
empresas e particulares) em 5,25%. Quatro anos antes estava em 1,25%. Em pleno Verão, os investidores estão preocupados com os problemas hipotecários e a 10 de Agosto provocam um terramoto nas bolsas mundiais, derrubando as cotações. Evitar o crash Nesse dia, ao ser interrogado no programa de negócios da CNBC, o analista financeiro Jim Cramer parece transtornado. De gravata colorida e mangas de camisa, Cramer brada exaltado contra Ben Bernanke: "Corta, corta [os juros]. Não é altura de ser académico! Ele não faz a mais pequena ideia do que se passa nas empresas! A Fed está a dormir." Perante o olhar incrédulo da jornalista, Cramer dirige-se aos telespectadores: "Catorze milhões de americanos fizeram empréstimos para compra de casa nos últimos três anos e sete milhões fizeram-no com juros que já
subiram 17 vezes e vão ficar sem as casas." A pressão sobre os governadores dos bancos centrais sobe. Na Ásia, na Europa, na América Latina, Canadá e EUA há intervenções para evitar o crash. Depois da Fed (24 mil milhões de dólares), o BCE intervém. Jean-Claude Trichet põe 95 mil milhões de euros no mercado monetário (maisdo que os 69 mil milhões de euros injectados após o 11 de Setembro). Na Grã-Bretanha e Canadá, os governadores informam que vão entrar em acção. A Comissão Europeia está preocupada com a volatilidade dos mercados financeiros e disposta a averiguar as responsabilidades da Moody's e da S&P. O comissário europeu do Mercado Interno, Charlie MacGrevy, convida os reguladores a debater o papel das raters, mas desde logo avisa que não actuará antes de a Organização Internacional da Comissão de Valores (Iosco) apresentar o novo código de conduta. Na quinzena de Agosto, no Senado americano, o advogado lobbyista e ex-senador democrata Cristopher Dodd intervém para questionar os critérios das agências de rating na atribuição de notas e pede "uma profunda reflexão". Dodd, que ainda preside ao Comité Bancário, propõe que se fixe em 5% o limite do subprime na carteira de crédito da Fannie Mae e da Freddie Mac. No total, têm 3,5 mil milhões de euros de hipotecas em todo o mundo, metade nos EUA (15% do PIB). Por essa altura, a imprensa britânica dá conta que o Northern Rock (antiga London Stock) não consegue ir levantar fundos para pagar os empréstimos que venciam. Em Londres, fiéis à tradição de não se meterem nos mercados, Governo e banco central recusam ajudar a salvar a instituição. "Os banqueiros ingleses têm mais liberdade e não gostam de intervenções nos mercados, pois é uma tradição mais liberal. Mas já reconheceram que a regulação foi ineficiente e que confiaram de mais nos mercados", diz Jacinto Nunes, que há anos esteve num gabinete no Banco de Inglaterra. "Os banqueiros ingleses são mais educados que os americanos, têm um código de conduta de um gentleman. Têm mais sentido de responsabilidade." Aviso de Vítor Constâncio
No centro financeiro de Londres, âncora da economia inglesa, chovem críticas aos supervisores por terem deixado a gestão do risco sem controlo. Sem mencionar o nome, o Sunday Times cita um alto executivo de
um banco britânico: "Esta é a pior situação que alguma vez vi nos mercados monetários nos últimos 20 anos. Se nada for feito, os problemas transbordarão para a economia real."A 9 de Setembro de 2007, o então governador do Banco de Portugal,Vítor Constâncio, chama a atenção para o impacto da crise hipotecária na economia nacional. Coincidência, ou não, quatro dias depois, em minutos, as acções do Northern Rock dão um trambolhão: recuam de 12 para uma libra. Vítima do seu próprio sucesso, o banco sucumbia ao pânico dos clientes que formavam filas à entrada das agências. Em menos de 24 horas são retirados dos cofres cerca de 500 milhões de euros. O Independent divulga, a 18 de Setembro, um facto sem precedentes: Alistair Darling, chanceler do Tesouro britânico, vai injectar 146 mil milhões de euros no Northern Rock. "Se for necessário, o Governo garante todos os depósitos." Sete meses depois, nada evitará a nacionalização do banco.
A um ano das presidenciais, a meca do sistema financeiro mundial está prestes a entrar em coma. Não tendo visto que anos de desregulamentação mudaram o cenário à sua volta, Bush tem agora a prova: sete milhões de casas estão à venda e 1,2 milhões de americanos deixaram subitamente de pagar as dívidas. Os investidores estão em pânico e Bush anuncia o congelamento por cinco anos das taxas de juro das hipotecas de subprime. Em Outubro, os republicanos deixam de lado as teorias neoliberais e criam um fundo de liquidez, de 100 mil milhões de euros, para comprar títulos de subprime e evitar novos colapsos. Sob pressão, a Casa Branca procura culpados e constitui uma equipa para apresentar um projecto de regulamentação da actividade das agências de notação. No relatório que entrega ao Senado, Eric Mindich reconhece o que se tornara óbvio: não há instrumentos legais para penalizar as agências por classificações de má qualidade. No seu gabinete de procurador-geral de Connecticut, Richard Blumenthal, não se demite. E propõe-se ir mais longe do que o Congresso nas averiguações. A equipa trabalha afincadamente no dossier. No mês seguinte, em Novembro, o procurador intimida a S&P, a Moody's e a Fitch a
prestarem esclarecimentos sobre o eventual uso de poder de mercado - subindo preços - para afastar concorrentes. Blumenthal confessa que tem uma outra preocupação: apurar se as agências atribuem notas a títulos de dívida sem a autorização dos emitentes que acabam por ser forçados a pagar-lhes, para não ficarem mal na fotografia.
A descoberta, em 2008, de ficheiros informáticos nos computadores dos colaboradores da S&P dá aos inquéritos grande dimensão. Num email de 2007, um funcionário da agência compara a S&P à própria Casa Branca, quando esta tinha à frente Richard Nixon, apanhado no escândalo Watergate (Nixon estava a par de operações ilegais). Na missiva, alerta alguns colegas para a possibilidade de a S&P e a Moody's poderem estar envolvidas em esquemas idênticos aos seguidos pela Arthur Andersen no caso Enron. Um clássico, portanto. De uma crise para outra Há ainda relatos de outras mensagens trocadas, também por correio electrónico, entre 2006 e 2007, a provar que os executivos da Moody's e da S&P são avisados para o que se estava a passar no mercado dos produtos derivados, mas que optam por manter as suas classificações favoráveis. A crise do subprime evolui para uma crise de liquidez e de solvabilidade, com o crédito a deixar de chegar à economia real. Nos EUA, são destruídos quatro milhões de postos de trabalho. No Reino Unido, o preço médio das casas desliza há meses. No final do terceiro trimestre de 2007, assiste-se a uma vaga de demissões de CEO de grandes bancos, depois de estes divulgarem perdas astronómicas. Lehman Brothers, Citigroup, Goldman Sachs, Bear Stearns, Morgan Stanley, Merrill Lynch, UBS, Crédit Suisse e Deutsche Bank revelam prejuízos com o subprime superiores a 22 mil milhões de euros. O porta-aviões suíço UBS fica em 2009 sob fiança do Estado. O Bank of America, a Goldman Sachs e o Lehman Brothers eliminam mais de 20.500 postos de trabalho. Pela primeira vez desde o 11 de Setembro de 2001, os bancos centrais concertam-se para atenuar o aperto do crédito na economia. Anunciam um aumento das linhas de financiamento aos bancos privados. O BCE injecta mais 350 mil milhões de euros no sistema e disponibiliza aos bancos liquidez ilimitada a taxas inferiores às do mercado.A iniciativa não convence o Nobel da Economia Paul Krugman. No mês seguinte, a 19 de Dezembro, reage: "Não acredito que os mercados voltem a funcionar normalmente, enquanto os investidores não se sentirem razoavelmente seguros de que sabem onde estão depositados os cadáveres, ou seja, os créditos podres."
Confusão global.A 30 de Janeiro de 2008, nas salas de mercados dos grandes grupos financeiros gera-se a confusão. Em menos de 24 horas, sem ninguém esperar, a S&P emite 6300 descidas de notação a produtos derivados. Em poucos meses, a Moody's e a S&P fazem mais revisões em baixa do que haviam feito em quase 100 anos de actividade. Só no segundo semestre de 2007, a Moody's corta 8725 ratings. Na manhã de 11 de Março, os olhares da aristocracia financeira estão fixados nos ecrãs dos seus portáteis. O analista Jim Cramer está de novo na CNBC a esbracejar, agitado: "O Bear Stearns está óptimo, não tem problemas. Não! Não! Não! Não sejam tontos, não retirem o vosso dinheiro." Na sede do Bear Stearns, conhecido por intermediar operações de alto risco (subprime e hedge funds), na Madison Avenue, em Nova Iorque, os sinos tocam a rebate. A instituição, com mais de 85 anos, tem de recorrer
às próprias reservas, de 12,7 mil milhões de euros, para responder aos pedidos dos clientes. Sexta-feira, dia 14. Os mercados abrem em queda acelerada. As acções do Bear Stearns sofrem um tombo de 35% face à sessão anterior. Em 12 meses, a cotação cai de 171 para 31 dólares. Para evitar ter de anunciar a bancarrota, o CEO Alan Schwartz ajoelha-se aos pés do JPMorgan, que o adquire por 10% do seu valor de mercado (166,8 milhões de euros). O Bear Stearns é a primeira vítima da crise. Joe Berardo diz que não se admirou com a notícia: "Eu conhecia um investidor do Bear Stearns que lá tinha 800 milhões de dólares e era um grande especulador de moeda e derivados/futuros. [No dia em que surgiram os problemas], todos percebemos que o chamado "roll over" [resgatar os títulos vencidos e lançar novas emissões para a captação de dinheiro] chegara ao fim." Os mercados não se auto-regulam e não funcionam na base da boa vontade e da ética. "Mais do que um défice de regulação, o que aconteceu foi um défice de supervisão", defende Ferreira da Silva. Porquê? "Os operadores respondem a incentivos, e quem tem que ter uma visão de conjunto da economia e do que se passa é o supervisor, no caso dos EUA a Fed, que manteve os juros baixos e durante muito tempo, dando estímulos errados aos mercados." Ou seja, nota, houve incentivos para os mercados se endividarem. Mais tarde, ao testemunhar no Senado, Greenspan, já ex-presidente da
Fed, admite que a ausência de controlo do sector financeiro, associada a uma estratégia de cedência de liquidez barata produzira uma situação bombástica. A 18 de Maio de 2008, o Financial Times publica uma investigação onde revela que a Moody's, no auge da bolha de crédito, se enganara, ao classificar produtos complexos com ratings elevados devido a um vírus no modelo matemático usado. O erro fora descoberto pela Moody's em 2007, mas a gestão, embora informada da falha, decidira manter as boas notas atribuídas aos derivativos, que apresentava aos clientes como sendo de baixo risco. No Verão de 2008, há indícios mais do que suficientes para as autoridades desconfiarem. O mundo parece estar a mudar e a forçar a "conversão" dos republicanos à economia estatizante. Em época de presidenciais, Bush ordena a nacionalização da Fannie Mae e Freddie Mac, ambas com rating máximo. No Reino Unido, o sistema bancário enfrenta novas ameaças: os britânicos Royal Bank of Scotland e Barclays e o suíço UBS estão com problemas de capital. Com quedas nos lucros de 28%, o CEO do HSBC adverte que as condições da actividade são as mais difíceis das últimas décadas. Em França, a Societé Générale é alvo de um rombo de 4,9 mil milhões de euros, enquanto o Crédit Suisse pede a ajuda do Qatar. Nos EUA, o Indy- Mac Bancorp acaba intervencionado. No início de Setembro em Wall Street vive-se um ambiente de fim de
festa. A Casa Branca tem um problema em mãos. E o segredo é de polichinelo: o Lehman Brothers (LB) está com dificuldades para saldar as suas dívidas. A Moody's coloca o LB sob avaliação, quatro dias antes de falir, com a justificação de que a sua situação se deteriorara mais do que o previsto, mas a agência não duvida da sua grande capacidade de honrar compromissos. Já a Fitch e a S&P confirmam o rating em AA. Sábado, 13 de Setembro. A quinta maior casa de investimento dos EUA está à beira da ruína. O presidente da Reserva Federal de Nova Iorque, Timothy Geithner, hoje secretário do Tesouro de Obama, procura vender o LB ao britânico Barclays, sem sucesso. À distância de alguns quarteirões, discute-se o futuro da Merrill Lynch (ML), que acumulara perdas de 5,5 mil milhões de euros. John Thain, CEO da ML, desdobra-se em contactos. No domingo, Paulson decreta que a ML passaria a ser uma mera filial do Bank of America. O negócio só foi aceite depois de Thain ter garantido para si um bónus de 10,5 milhões de euros.Segunda-feira, 15 de Setembro. Há relatos de grande desorientação na Casa Branca e na Fed. O caso não é para menos. Aos 150 anos, o respeitado Lehman Brothers está falido. Os republicanos ortodoxos decretam a bancarrota e a filial europeia vai à falência horas depois. O Velho Continente entra em pânico. Horas mais tarde, a Moody's classifica o Lehman Brothers como "totalmente lixo" e a Fitch revê a nota para default. O advogado Anton Valukas, da Jenner & Block, que lidera as investigações realizadas ao LB, conclui, mais tarde, que o banco manipulou "intencionalmente" os números para ocultar prejuízos e excesso de dívida: os activos sustentados em dívida representavam 32 vezes o capital. O inquérito revela que os executivos da LB "engendraram" um esquema conhecido por "Repos 105" [o LB recomprava os activos e penhorava-os por 105% do preço de venda, o que permitia fazer o seu registo como venda e retirá-los do balanço]. No primeiro trimestre de 2008, são transferidos para fora do balanço cerca de 35,2 mil milhões de euros.Para Valukas, a atribuição de notações de crédito generosas é uma fonte de facturação das raters, pois "impulsionava o preço das acções" das grandes agências "e aumentava as remunerações entregues aos executivos".Na sequência das audições no Senado, a S&P anuncia reformas internas para aumentar a qualidade do serviço, enquanto o CEO da Moody's mantém a defesa do esquema de bónus, reconhecendo que houve incapacidade de prever a crise hipotecária. Nas horas seguintes à falência do LB, os supervisores emitem sinais contraditórios.Na city, há outros porta-aviões prestes a naufragar. Classificado pelas raters à prova de bala - com Aaa/AAA -, o conglomerado segurador AIG, sustentado em operações de subprime e com carteiras contaminadas, está prestes a declarar falência. A AIG não pusera de lado dinheiro suficiente para cobrir as perdas. Desta vez, para travar o efeito dominó, o Tesouro avança com o resgate. Lisboa inquieta, mas serena Por essa altura, em Lisboa, o clima nas salas de administração dos bancos é de grande apreensão, mas para a maioria ainda não há uma percepção plena do que se passará a seguir.
"O colapso do LB, pela dimensão e pelo seu envolvimento nos mercados
internacionais, deu-nos indicação de que algo de grave se ia passar na UE
e no sistema financeiro, mas não sabíamos exactamente o quê", conta
João Costa Pinto, presidente do grupo Caixa de Crédito Agrícola Mútua
(CCAM). A partir daí, observa, "os bancos começaram a desconfiar uns
dos outros e ninguém emprestava a ninguém. O mercado interbancário
fechou".
Quem também andava preocupado era Diogo Teixeira, que trabalhava
em Paris e que, um ano antes, se instalara em Portugal com a família, com
uma missão: abrir a gestora de activos Optimize. A inauguração estava
prevista para esse mês de Setembro. Os tempos aconselham moderação:
"Quando percebi o que se estava a passar [falências], fiquei preocupado,
mas não me assustei muito, pois sei que nos períodos de grandes perturbações
nascem oportunidades." Há sempre dúvidas. "A nossa preocupação
era não sermos arrastados por uma falência de um banco em Portugal
onde tínhamos aplicações", explica.
Nas salas de mercado da city, por essa ocasião, há desordem e consternação.
Qual será o próximo a cair? As reportagens da altura dão conta de
um ambiente sinistro: pelas ruas de Nova Iorque deambulam "wall
streeters" de olhar vazio, errantes.
Para ilustrar a sua determinação, Paulson vai buscar o presidente do
BlackRock, Larry Fink, que administra directa e indirectamente activos de
16 biliões de euros. O corretor, que nos anos 1990 tinha estado na origem
dos produtos de subprime, vai ajudar o Tesouro a avaliar os activos
tóxicos dos bancos americanos.
Depois de o FMI ter estimado as perdas decorrentes do subprime em um
bilião de euros, cerca de 10% do PIB norte-americano, e os créditos contaminados
em 8,6 biliões de dólares, o então director-geral do FMI, Dominique
Strauss-Kahn, defende que a crise financeira resulta de erros de
regulação.
Islândia cai e BPN também
Não há hipótese de escaparem. As responsabilidades das raters na ampliação
da crise vêm espelhadas em todos os jornais. O Financial Times
apura que, "quanto mais operações a Moody's avalia, mais lucros obtém".
E escreve que a Moody's alterou o seu comportamento no mercado assim
que pediu admissão à cotação, pois passou a emitir análises mais regulares
e menos exigentes. Entre 2000 e 2007, os lucros da Moody's quadruplicam,
o que deverá ter deixado feliz o seu então grande accionista
Warren Buffett. Dois anos mais tarde, Buffett vende os seus 30 milhões
de acções, assim que é conhecido que a SEC abriu investigações à actuação
da Moody's.
No Outono de 2008, o alarme volta a ecoar nos mercados. O país com
melhor nível de vida do planeta lida com problemas de caixa. Os 313 mil
islandeses gritam por socorro. Com activos equivalentes a 800% do PIB e
dívidas correspondentes a 10% da riqueza produzida, os três bancos locais
implodem. Vinte anos depois, regressam à esfera estatal. Também
aqui as raters falharam nas análises de risco ao país e ao sistema financeiro.
Actualmente, o país trava um braço-de-ferro com a Holanda e o Reino
Unido, pois decidiu enviar a factura da crise aos bancos que financiaram a
bolha especulativa.
Já se sabe que a banca portuguesa tomava como domínio reservado a
sua situação concreta. Mas, naquele Outono de 2008, tem de lidar com
um tema comum ao sector: falta de liquidez.
Com a desconfiança a pairar no ar, o BPN - que tinha sido alvo de uma gigantesca
burla - desmorona-se com perdas de 800 milhões de euros.
A 2 de Novembro de 2008, o Governo decreta a sua nacionalização, alegando
risco sistémico. "O Greenspan já confessou que confiou de mais
nos mercados, e o mesmo se passou com o Banco de Portugal, no caso
BPN", diz Jacinto Nunes, acrescentando que "nestas matérias há muitos
interesses e muito volumosos".
Num ambiente de falta de confiança dos mercados no sector financeiro,
o Banco de Portugal passa a reunir-se com frequência com os banqueiros.
Na altura, em entrevista ao PÚBLICO, António Borges profetiza: "A crise
só termina, quando os depositantes voltarem a ter confiança na banca.
Mas, infelizmente, a confiança está muito abalada e não é evidente que
se restabeleça facilmente."
Dezembro de 2008: o FBI anda de mão no gatilho à procura do próximo
"inimigo público número um". A confiança dos investidores num dos seus
gurus é abalada. Aos 70 anos, Bernard Madoff é acusado de ter roubado
os clientes em mais de 45,7 mil milhões de euros. Políticos, artistas e
grandes grupos internacionais como o Santander, o Banco Medici, a Fortis
e o HSBC tinham confiado poupanças ao burlão, que hoje cumpre uma
pena de 150 anos de prisão.
A resposta à crise financeira tem impacto a nível doutrinário, pois só o
Estado parece poder salvar Wall Street da bancarrota. "Isto é socialismo
financeiro, não é americano!", gritava um senador republicano do Kentucky
ao tomar conhecimento da decisão de Bush injectar na economia
americana 492 mil milhões de euros.
2009
Das finanças para a vida real - e S&P "baixa" Portugal
O que inicialmente resultara de um excesso de endividamento, expresso
no subprime, acaba, aos poucos, por se transformar num problema geral
do sistema financeiro que se alastra à economia real.
Em 2009, os EUA e a zona euro vão contrair-se entre 1,2 e 1,7%. A Alemanha
anuncia a maior recessão desde a II Guerra Mundial. O produto
gerado a nível mundial recua 2,2%.
A 21 de Janeiro de 2009, depois dos cortes nos ratings da Grécia, da Irlanda
e da Espanha, a S&P baixa a nota de Portugal para A++ por "enfrentar
desafios difíceis".
A 2 de Abril de 2009, o FMI emite uma nota a estimar em 700 mil milhões
de euros os títulos contaminados ainda nas carteiras dos bancos norteamericanos
e europeus.
Num quadro de incertezas, as potências mundiais encontram-se numa
cimeira em Londres. O G20 proclama "que a ausência de regulação está
na base da crise e que esta não se recupera até que se reconstrua a confiança
no sistema financeiro", e propõe a criação de uma agência para
regular os mercados. Mas o G20 não age em consonância, pois limita-se a
celebrar um compromisso genérico "no sentido de ampliar a supervisão e
o registo regulador das agências de rating para garantir que cumpram o
código internacional das boas práticas, em particular para prevenir conflito
de interesses".
No final da que ficou conhecida como a "grande cimeira da globalização",
na qual a China e o Brasil conquistam voz própria, o FMI ganha peso, ao
surgir como instituição menos ligada aos interesses americanos.
Antes do final de 2009, o FMI faz um aviso à França: o aumento do seu
défice orçamental de 7,5% é preocupante e por isso deve adoptar medidas
de consolidação fiscal credíveis. A Inglaterra também surpreende, ao
anunciar que o seu défice é de 11,5%, maior que o da Espanha (11,2%), e
menor que o previsto para a Grécia, de 13,6% (que viria afinal a ser de
15,4%). Mas será Dublin a surpreender os parceiros: 14,3%.
Dubai treme e pede socorro
O primeiro indício de que se estaria a entrar num novo capítulo da crise
mundial, marcado agora por dificuldades orçamentais, surge de um lado
inesperado. Sem o dinheiro barato a fluir, o "admirável" Dubai, que sustentara
a sua expansão no imobiliário, pede ajuda aos credores. A metrópole
do Golfo Pérsico pugna pelo reescalonamento da dívida e pelo
apoio do Abu Dhabi.
Por causa do descontrolo das finanças públicas do Dubai, surgem interrogações
sobre a boa saúde dos países mais endividados. A queda era um
incidente ou uma advertência?
Nos departamentos das agências de notação financeira que estudam a
dívida soberana - que não tinham estado no centro do furacão em 2007 e
2008 - é dado o alarme. As raters decretam a descida de notação da
dívida de várias entidades ligadas ao Dubai.
No final de 2009, a atenção das agências sobre os PIGS preocupa as autoridades.
No seu relatório anual, a Direcção-Geral do Tesouro revela que,
logo no início do ano, "no espaço de uma semana, a S&P reduziu a notação
de crédito da Grécia, Espanha e Portugal, e ainda colocou sob
vigilância a notação da Irlanda". Ao longo do ano, o rating de Portugal
sofre cinco avaliações e o da Espanha duas. Já a Grécia e a Irlanda são objecto,
cada uma, de nove revisões dos ratings.
Das acções para a dívida
Os problemas no mercado de crédito, em 2009, fazem disparar as receitas
das principais empresas de notação.
A McGraw-Hill anuncia que a sua subsidiária, a S&P, registou lucros anuais
acima do previsto, depois de um aumento de 17% de receitas nos departamentos
que analisam as contas públicas dos Estados. Já a Moody's informa
que os lucros subiram 15%, uma evolução que atribui à forte procura
de ratings de dívidas.
A evolução não apanha de surpresa o maior investidor do mundo. Larry
Fink explica à Exame Brasil (Junho de 2011) que hoje se assiste "a um
reequilíbrio das carteiras", com os investidores a largarem o mercado accionista
e a optarem "por títulos de rendimento fixo [títulos de dívida]",
tendência a manter-se nos próximos anos.
Joe Berardo interroga-se pouco depois: "O Larry Fink disse isso? Ele tem
que investir os 11,2 biliões de euros [que gere] e os mercados já são pequenos
para ele." O investidor português explica como funciona: "Os especuladores
de derivados atacam a dívida soberana, a moeda e o mercado
de matérias-primas, que são transaccionados nos mercados de futuros."
Assim, o vendedor compromete-se a entregar ao comprador um activo,
em quantidade pré-determinadas, numa data futura e a um preço
pré-acordado, tendo o comprador que pagar a quantia estabelecida.
Nada é oficial, tudo é virtual.
"Quando George Soros [em 1993] quase levou a Inglaterra à falência, vimos
que era possível fazer dinheiro assim", continua Berardo, que lamenta
que o presidente Barack Obama "não tenha ainda regulamentado o
mercado de derivados".
Na edição de Maio de L"Observateur, o director-geral da bolsa NYSE Euronext,
Dominique Cerruti, conta: "Cerca de 90% das transacções nos
mercados de futuros e derivados, que representam 422,1 biliões de
euros de contratos, ou seja, 10 vez mais que o PIB mundial, são opacas,
ou seja, não são reguladas." Já nos mercados de dívida, como a soberana,
diz que 99% das transacções não têm transparência. Cerruti chama a
atenção para o facto de a "opacidade ser galopante" por "escapar ao controlo
dos reguladores e dos governos", o que ameaça o financiamento
das economias.
2010
Riscos ignorados
Depois do subprime, do sistema financeiro, da economia real, em 2010 a
crise abre um novo capítulo.
As agência de notação percepcionam que dentro da UE nem todos os
países têm o mesmo grau de risco e juntam-nos segundo critérios de incumprimento.
Começam por destacar a Alemanha, Holanda e nórdicos como os mais
sólidos. Colocam a Espanha com menos risco, seguida de Portugal, e
atribuem à Irlanda e à Grécia maiores probabilidades de incumprimento.
Portanto, quando o ano começa, os PIGS já têm uma espada apontada à
cabeça, pois as raters atribuem-lhes outlook negativo (possibilidade de
nova revisão em baixa).
A Grécia é o primeiro a ser declarado "zombie". O rating soberano helénico
cai para bbb, a partir do qual deixará de se poder financiar.
As agências respondem às críticas de Atenas, alertando para o elevado
grau de endividamento, acima de 110%, e para o buraco orçamental de
13,5% do PIB.
O ano de 2010 traz muitas dores de cabeça a Jean-Claude Trichet, que
carrega às costas o papel de garante da estabilidade do euro. Ora calmo,
ora impaciente, o francês tece rasgados elogios ao plano grego de contenção
orçamental que classifica de "convincente", mas recusa intervir
para comprar dívida soberana.
Nos EUA, as comissões que investigam o papel das raters continuam a
fazer relatórios bombásticos. A meio da tarde de 14 de Março, o democrata
Carl Levin - que chefiou a subcomissão permanente do Senado
americano que investigou a acção da Moody's e da S&P na crise financeira
- anuncia as conclusões: "As agências foram influenciadas por empresas
de Wall Street para dar boas avaliações a créditos hipotecários e fizeram
isso por dinheiro." O investigador menciona diálogos, que ocorreram entre
2004 e 2007, protagonizados por raters e directores da Goldman
Sachs e da Merrill Lynch.
Paul Krugman vai garantir que as suas palavras chegarão a todos. É assim
que inicia a sua coluna regular no New York Times: "Palmas para a subcomissão
permanente do Senado." Algumas linhas à frente: "O que a
subcomissão encontrou confirma as nossas piores suspeitas. Por email,
um colaborador da S&P avisou os directores que era necessário uma reunião
para discutir critérios de ajuste para avaliar títulos de créditos imobiliários
por causa da permanente ameaça de perda de negócio." Outras
mensagens, trocadas entre colaboradores de agências, referiam a necessidade
de "alterar os números" para preservar clientes.
Nos processos judiciais, as agências de notação aceitam alguns erros,
mas apresentam-se em "julgamento" defendendo que emitem opiniões
que não têm que ser aceites e que não foram as únicas a errar. Apontam
o dedo aos gestores, auditores que certificaram as contas, advogados
que não detectaram irregularidades e analistas que produziram research
aconselhando a compra das acções tóxicas.
Este Maio, no Estoril, o economista Nouriel Roubini, que ficou célebre
por em 2005 ter alertado para o facto de "o preço dos imóveis residenciais
surfarem sobre uma onda especulativa que fará afundar a economia",
considerou também que as agências não têm todas as responsabilidades.
Ainda assim, aconselhou a uma profunda reforma do sector, "para evitar
conflito de interesses e, mais importante, para garantir a sua independência".
Ninguém parece ter tantas certezas quanto às responsabilidades das raters
no eclodir da crise hipotecária quanto o procurador-geral do Connecticut.
Nova investigação
A 18 de Março de 2010, Blumenthal avança com nova investigação às raters,
onde admite que a Moody's e S&P "podem ter ganho ilicitamente
centenas de milhões de dólares", adoptando esquemas de favorecimento
de clientes (emissores de títulos). As agências internacionais dão nota do
estado de espírito de Blumenthal: "Acreditamos que o Governo federal
tem matéria para uma acção contra as agências de rating."
Em Portugal, o governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, considera
o assunto arrumado: "dificilmente" a Europa seguirá os processos
judiciais que correm contra as raters nos EUA, pois "lá o que está em
causa, nas acções que já foram interpostas, são as notas que deram aos
chamados "empréstimos subprime" feitos a pessoas com poucos rendimentos,
empréstimos com poucas possibilidades de serem pagos".
Cresce o temor de que a crise grega se espalhe. Em Abril de 2009, Atenas
oficializara um pedido de ajuda à UE e ao FMI. Mas a garantia de protecção
não é suficiente para conter os investidores. Nos dias seguintes, o
diferencial das obrigações públicas face às alemãs atinge o nível mais
elevado desde a criação do euro.
Depois de, a meio do mês, a Moody's ter atirado o rating grego para o
lixo, a 27 de Abril a S&P vem também colocar fora de jogo os títulos helénicos
(no jargão, junk bunds), cortando a nota atribuída a Portugal para
A-.
O comissário europeu para os Assuntos Monetários e Económicos, Olli
Rehn, pede "responsabilidade e rigor" às agências, enquanto Paul Krugman
recorda que, em 2006, 93% dos instrumentos financeiros estavam
classificados como AAA, quando afinal eram junk.
A 4 de Maio, depois de Angela Merkel avisar Portugal, Espanha e Irlanda
de que deviam adoptar medidas de austeridade, os sites internacionais
voltam-se para Madrid, que necessitaria de um resgate de 280 mil milhões
de euros. Com a Fitch a preparar-se para baixar a avaliação da dívida
espanhola, o Ibex cai 5,41% e o prémio de risco dispara. No final de uma
reunião, em Bruxelas, Zapatero exclama: "Isto é uma absoluta loucura!"
A 5 de Maio, o estado-maior do BCE aterra em Lisboa para um dos poucos
encontros anuais que decorrem fora da Eurotower, em Frankfurt. A UE
está disfuncional. Nessa quarta-feira, a imprensa alemã cita o líder da
bancada parlamentar da CDU, Volker Kauder, que admite a possibilidade
de "insolvência ordenada" de alguns Estados, em alternativa ao resgate
financeiro. A moeda única cai para 1,27 dólares, o valor mais baixo dos últimos
13 meses.
Com a ameaça de contágio do "vírus" grego à UE, as cotações nas praças
europeias marcam passo. Na linha da frente está agora Portugal. Os analistas
estimam as necessidades de financiamento em 100 mil milhões de
euros. Os juros das obrigações do tesouro nacionais a 10 anos disparam
para 5,4%, mais 33 pontos que na véspera. À data, só a Grécia paga juros
mais altos.
Quinta-feira, 6 de Maio. Aos 68 anos, Trichet prepara-se para enfrentar
aquele que será, muito provavelmente, o momento mais delicado do seu
consulado à frente do BCE.
Pela manhã, o economista Joseph Stiglitz vaticina que a crise grega pode
"significar o fim do euro". O francês responde que, sendo verdade que a
recuperação europeia será lenta devido ao que se passa na Grécia, o
plano de austeridade apresentado por Atenas "para activar as ajudas bilaterais"
é suficiente. Mas vai colocar-se no radar dos analistas, ao declarar
que o BCE não irá intervir para comprar títulos de dívida soberana
grega, posição que alterará horas depois.
O pacto da Bacalhoa
Os líderes dos bancos centrais europeus presentes em Lisboa têm encontro
marcado em Azeitão. Quando o grupo sai dos autocarros que os
transportam até à Quinta da Bacalhoa, pertença de Joe Berardo, parecem
velhos colegas de escola preparados para o exame final. Há fotos
dos governadores a entrar no palacete de olhar baixo, acompanhados
das mulheres, tal é a tensão. Trichet considera, em declarações a um jornal
alemão, a situação nos mercados financeiros, nos dias em que esteve
em Lisboa, como a mais "problemática desde a II Guerra Mundial".
Nessa noite, de 6 de Maio, os enviados do jornal New York Times a Lisboa
escrevem: "Os governadores estavam sentados a almoçar com as suas
mulheres na elegante Sala Império do Palácio da Bacalhoa, quando as
bolsas nova-iorquinas [que abrem às 14h de Lisboa] começaram a cair."
Em 20 minutos, o índice bolsista da city tomba 9%, gerando uma onda de
pânico que se propaga pelos quatro cantos do mundo. Com o Dow Jones
a mergulhar mil pontos, os investidores perdem todo o ganho acumulado
durante o ano.
Sustentada em relatos em off de governadores presentes na Quinta da
Bacalhoa, uma crónica do Times publicada cinco meses depois revela que,
durante a refeição, os olhares estavam colados aos Blackberry e ao constante
piscar das luzes de aviso de mensagens.
O jornal aponta a Quinta da Bacalhoa como o local onde é "cozinhado um
pacto difícil", para evitar que o euro se afunde e acrescenta que Trichet
teme "que um problema fiscal na pequena Grécia, que havia consumido
os dirigentes europeus nos últimos meses, estivesse em vias de provocar
uma nova crise financeira à escala mundial". Finalmente, o banco central
intervém nos mercados de dívida pública e privada da área do euro para
garantir que a liquidez chega às instituições financeiras.
No domingo, 9 de Maio, os ministros das Finanças rumam a Bruxelas para
se articularem para salvar a moeda única. Segunda-feira, 01h10. Depois
de uma maratona negocial, chegam a acordo sobre os mecanismos de intervenção
em caso de necessidade de um Estado-membro. E anunciam
que vão criar, com o FMI, uma linha de apoio até 720 mil milhões de
euros.
Ao mesmo tempo que chega à Grécia a primeira tranche do empréstimo
de emergência, de 14,5 milhões de euros, a 18 de Maio, os juros da dívida
de longo prazo que estavam em 9,16% começaram a subir e chegam, em
Junho deste ano, acima de 17%.
Na manhã de 18 de Maio, Fernando Ulrich, presidente do BPI, antecipa
grandes sarilhos: "O dia em que bateremos na parede não está longe.
Talvez semanas. Lamento, mas o país tem de saber. Estamos a falar dos
bancos cortarem fortemente o crédito e a República portuguesa suspender
pagamentos e ter de pedir [ajuda] ao FMI."
Em Portugal, o controlo das finanças públicas deixara de ser uma prioridade
para o Governo, o que atirou o défice para os 10%. O sistema
bancário nacional, que passara à margem da crise financeira, habilita-se
agora a sofrer. Os mercados interbancários, que desde a falência do LB
andam desconfiados, fecham-se definitivamente para as instituições dos
países periféricos.
Em Espanha, a situação está à beira de se descontrolar. Circulam informações
de que um grande grupo privado espanhol está prestes a declarar
insolvência, pois com os mercados de liquidez encerrados o banco não
pode levantar fundos para pagar dívidas.
Na conferência de imprensa que marcou a estreia de Vítor Constâncio
como vice-presidente do BCE, a imprensa anglo-saxónica ferra os dentes
em Trichet: o que se passa com o sistema financeiro espanhol? Quais as
necessidades de recapitalização?
De Londres, Emílio Botin, presidente do Santander, dirige-se aos mercados
para "se distanciar" dos ataques dos especuladores ao sector
bancário do seu país. A 18 de Junho, anuncia que, nos exames de resistência
do capital a cenários adversos, o Santander é o melhor classificado
(ficará afinal entre os dez mais sólidos e atrás do BPI). Nesse mesmo
dia, os 27, reunidos em Bruxelas, reagem à declaração de Botin e divulgam
os resultados dos testes de stress.
Dagong, a rater chinesa
Surge então uma intervenção inesperada e de nome pouco conhecido: é
a chinesa Dagong Global Credit Rating, preparada, pela primeira vez,
para dar a sua opinião sobre 17 países ocidentais, de um total de 50. Os
EUA surgem classificados abaixo da China (AA+). Portugal, Espanha,
Itália, Bélgica, Chile, África do Sul, Malásia, Estónia, Polónia e Israel são
pontuados com a nota A-.
Carlos Monjardino, presidente da Fundação Oriente, vê o aparecimento
da Dagong como uma reacção "às ineficiências das três grandes empresas,
que têm andado ao sabor dos acontecimentos e, ou não conseguiram
detectar os problemas da dívida pública, ou não os quiseram detectar,
pois já eram visíveis antes". "Para se proteger, ao próprio país e às suas
empresas, privadas e públicas, a China criou uma agência com uma visão
mais próxima da realidade", acrescenta Monjardino, para quem "Pequim
considera as agências anglo-saxónicas tendenciosas".
Mais ou menos por essa altura, com a Grécia encostada às boxes, as raters
reorientam as antenas para os outros três países com problemas de
finanças públicas. A Irlanda, Portugal e Espanha começam a ficar sem
margem de manobra.
Por agora, é o tigre celta, apresentado aos europeus como "bom" exemplo,
que está em apuros. A economia irlandesa estagnara, o investimento
caíra 15%, o desemprego disparou. Os bancos entraram em colapso. A UE
e o FMI voltam a revelar grande desorientação.
Depois de, em Julho, a Moody's ter cortado o rating celta, a S&P faz o
mesmo por duas vezes, alegando que o défice público chegará a 20% do
PIB (será de 32%).
É altura de Paul Krugman se manifestar. Em entrevista ao jornal espanhol
El País, confessa que não se "surpreenderia ver um dos países [PIGS] a ser
forçado a sair do euro". "Acredito que há uma possibilidade plausível de a
Grécia ser forçada a sair e esse contágio provocaria sérios problemas a
todos os outros, especialmente Portugal, e logo depois possivelmente
seriam a Espanha e a Irlanda." O Nobel afasta, em todo o caso, a ideia de
a Europa entrar em colapso. "Ficaria realmente surpreendido se a França
e a Alemanha não defendessem com unhas e dentes a moeda única no
futuro mais imediato."
Nos PIGS, os cenários macroeconómicos degradam-se, o que deixa a
porta aberta aos especuladores. Em Agosto, a banca nacional depara-se
com uma circunstância inédita: torna-se dependente do BCE para se alimentar
de fundos. Naquele mês, devia a Frankfurt 50 mil milhões de
euros.
Setembro. Depois de admitir que só no final de Agosto teve a noção de
que era preciso tomar medidas adicionais às do PEC II, o então ministro
das Finanças Teixeira dos Santos garante que a despesa pública está controlada.
"Temos de tomar medidas duras que impõem sacrifícios e nunca
sabemos o que é que os mercados mais tarde nos vão estar a exigir", diz
em entrevista ao PÚBLICO. E até podem "dizer que se calhar não chega,
querem mais". Teixeira dos Santos já adivinhava: "É quase uma insaciabilidade
dos mercados [exigirem] medidas de austeridade desta natureza."
"Se os juros chegarem aos 7%, [então virá o FMI]", vaticinou.
Por ora, os compradores de dívida ainda estão focados na Irlanda. A
pressão para os celtas pedirem o resgate sobe de dia para dia. Os juros
da dívida a 10 anos aproximam-se dos 9%.
O Outono está a ser "glacial" para os três milhões de irlandeses. Com os
bancos a falir, o Governo pagou aos obrigacionistas estrangeiros que
abandonaram a Irlanda com o seu dinheiro e criou um problema para o
Estado.
No início de Novembro, os jornais anglo-saxónicos informam que o banco
central está de mãos atadas, pois, para evitar a falência dos bancos privados,
injectara 50 mil milhões de euros no sector, quando as suas reservas
não iam além de 1,5 mil milhões. O imobiliário cai 50% e o buraco
orçamental dispara para 32% do PIB.
De Dublin até Lisboa
Sem remédio, os celtas dão por terminada uma marcha sem futuro. A
dívida pública, que em 2007 era de 25,1% do PIB, vai chegar, segundo a
OCDE, a 165% em 2012 (a Grécia 125%, Portugal 115%).
A 22 de Novembro, Dublin diz-se disponível para receber ajuda para recapitalizar
a banca. Horas depois, ainda que admita que a situação do país
é "frágil", o Governo desmente o recurso à ajuda externa.
O dia vai a meio quando o presidente do Eurogrupo, Jean-Claude
Juncker, confirma o que já se sabia: seis meses depois de a Grécia ter aberto
as portas à ajuda externa, é a vez de a Irlanda capitular. Do resgate
de 85 mil milhões de euros, 35 mil milhões destinam-se a capitalizar os
bancos, com juros fixados em 5,83%.
Apesar dos termos do acordo estarem a ser negociados, tal como já
acontecera à Grécia, a S&P decreta uma tesourada no rating celta, alegando
que Dublin vai tomar emprestado mais do que o anunciado. A
Fitch deixa cair a nota três níveis, para BBB+, e a Moody's decreta um
tombo de cinco níveis, para Baa1.
Em Itália, já este mês, numa reunião em que participou, Vítor Constâncio
observa: se uma empresa de notação de risco de crédito corta o rating de
um país em cinco níveis, em 24 horas, "isso é intrigante e confuso", ainda
para mais se as alterações se dão "logo após" terem sido revelados "progressos
na consolidação orçamental".
Na apresentação das contas de 2010, em Fevereiro deste ano, o CEO da
Moody's, Raymond McDaniel, dirá: "Depois das difíceis condições trazidas
pela crise financeira [de 2007 e 2008], o negócio ganhou força [com o]
forte desempenho dos ratings da dívida." Os lucros, em 2010, ficam em
354,5 milhões de euros. As previsões da Moody's para este ano apontam
para um aumento dos proveitos de 10% na generalidade dos negócios.
A MacGraw-Hill, dona da S&P, salienta: "O recorde no volume em dólares
na emissão de dívida empresarial, o aumento de ratings de empréstimos
bancários e o mercado das finanças públicas produziram um aumento das
receitas do grupo que em 2010 lucrou 612 milhões de euros."
2011
Fugir ao choque
Início de 2011. Cada um à sua maneira, Portugal e Espanha procuram escapar
à onda de choque das intervenções externas na Grécia e Irlanda.
Mas ambos receiam que a situação piore.
A crescente deterioração das finanças públicas e a falta de perspectiva
de crescimento castigam Portugal. O aumento das exportações e o nível
reduzido de poupança interna (6% do PIB) são insuficientes para pagar as
importações e os juros da dívida. A República não consegue controlar o
excesso de endividamento externo.
Por seu turno, a Espanha, que protagonizara uma expansão forte na última
década concentrada no imobiliário, indústria automóvel e turismo,
já não gera procura interna suficiente para absorver os edifícios construídos
nos anos de expansão. O sistema financeiro acumula stocks de
crédito malparado e as cajas lidam com graves desequilíbrios.
O investimento estrangeiro começa a desinvestir da indústria automóvel.
Os défices agravados das regiões autonómicas preocupam os analistas.
Sócrates procura fundos
De viagem em viagem, Sócrates procura levantar fundos. Por vezes, os
chineses até aparecem nos leilões. Mas os esforços não chegam para
convencer a China e o Brasil. O secretário de Estado Costa Pina manifesta
interesse em ver os bancos a colaborar. A aliança tem uma lógica: o
sistema financeiro compra obrigações do tesouro para ter colaterais para
se financiar no BCE; e o Estado garante que os leilões de emissão de
dívida pública não ficam vazios. Sócrates confia que pode adiar o resgate
até à entrada em vigor do novo mecanismo europeu de ajuda financeira.
A fraca execução orçamental e as metas a serem furadas não incute confiança
nos investidores, que continuam a exigir juros históricos para financiarem
o país.
A 12 de Janeiro, o FT alemão antecipa que a UE prepara uma ajuda externa
a Portugal que poderá chegar a 100 mil milhões de euros. Sócrates
desmente a notícia e congratula-se com o facto de, nessa manhã, a
República ter conseguido ir buscar 599 milhões de euros ao mercado a
uma taxa de 6,72%, ligeiramente inferior à emissão de obrigações anterior
(6,8%).
No seu blogue, Paul Krugman, que conhece a situação portuguesa [nos
anos 1970 fez parte, na qualidade de investigador, de uma missão técnica
do FMI], faz-se ouvir com estrondo: "Considerar um sucesso a capacidade
de Portugal de colocar títulos com juros de 6,7% diz alguma coisa sobre o
profundo desespero da situação europeia. Uma taxa de juro tão alta é
pouco menos que ruinosa. Mais sucessos como este e teremos a periferia
europeia destruída."
A competição entre as raters está a ser um factor de grande motivação
para os mercados. Depois de falharem ao sobreavaliarem o subprime,
não alertando os investidores para os riscos, são agora acusadas de ampliar
os problemas dos países mais frágeis.
Apesar de resgatada, a Grécia continua nos holofotes das raters. 14 de
Janeiro. A Moody's, a S&P e a Fitch pronunciam-se: a dívida grega torna a
solvência do país altamente vulnerável a choques adversos. E a Irlanda?
Mesmo depois da ajuda, as três agências mantêm o rating celta em A-.
Espanha processa raters
A 28 de Fevereiro, a S&P aparece a fixar o rating espanhol em AA,
mantendo-o em outlook negativo. Os bancos são alvo de revisão em
baixa.
Está fora de questão deixar a Espanha ao livre arbítrio das empresas de
notação. Em Madrid, um grupo de advogados avança com um processocrime
contra a Moody's, S&P e Fitch, que acusam de alterarem os preços
de mercado em benefício dos seus interesses e de alguns clientes, prejudicando
o Tesouro espanhol.
José Reis, José Manuel Pureza, Manuel Brandão e Maria Manuela Silva
pedem um inquérito contra a S&P, Moody's e Fitch. Reis, catedrático de
Economia na Universidade de Coimbra, diz ao PÚBLICO que a acção visa
"empresas que não têm qualquer outra legitimidade que não a de terem
sido criadas pelos seus accionistas", que são "os próprios fundos internacionais
que procuram remunerar-se com as transacções financeiras internacionais
e o financiamento das empresas ou dos Estados". O Departamento
Central de Investigação e Acção Penal abre investigação.
Nos EUA, as três agências resistem, avançando com a Primeira Emenda
da Constituição, que lhes garante liberdade de opinião.
A pressão sobre a Grécia não esmorece. Em menos de seis meses, a
Moody's corta-lhe o rating nove vezes. Com os juros da dívida pública de
longo prazo a galgarem os 17%, o primeiro-ministro, George Papandreou,
intervém e acusa as raters de obedecerem a "incentivos mal alinhados".
Pede ao Eurogrupo que actue com mão pesada sobre as agências.
"Querem moldar o nosso destino e determinar o futuro das nossas
crianças [sem] prestar contas [a ninguém]." Para alguns analistas, começa
a preparar-se o terreno em direcção a um pedido do reescalonamento da
dívida.
Uma ideia reforçada quando, daí a semanas, é divulgado um email de um
colaborador do Citigroup que menciona a "hipótese de a Grécia avançar
para a reestruturação da dívida ainda durante a Páscoa". Horas depois,
Papandreou aparece na TV de cabeça perdida a exigir uma investigação à
Interpol. O Citigroup apressa-se a responder: "Vamos cooperar com as
autoridades, já que considerámos não ter havido qualquer má conduta do
nosso funcionário."
Nos mercados de dívida soberana portuguesa, o ambiente é frenético. Os
pareceres das raters, que três anos antes seriam apenas notas de rodapés,
não saem agora das primeiras páginas dos jornais. No início de
Março, a Fitch deixa no ar o que foi visto como uma ameaça: se a cimeira
europeia de 24 e 25 de Março não for conclusiva, ou seja, não entrar em
vigor o novo mecanismo de ajuda europeu, os problemas de financiamento
da República vão agravar-se. Por sua vez, a Moody's aterra na
Portela para concretizar o terceiro corte no rating. Nova descida e a
República seria classificada como "lixo" e os títulos soberanos passariam
a "especulativos".
Na quarta-feira, 9 de Março, a República volta aos mercados para se financiar
com os juros a dispararem para os dois dígitos e a procura a
deslizar. À tarde, a Dagong anuncia que descia o rating nacional e a S&P
revela que tem cortes em perspectiva.
Sexta-feira, o ministro das Finanças apresenta o novo plano de austeridade,
o PEC IV, para 2012 e 2013.
Sábado. Nessa tarde, 12 de Março, convocados através da blogosfera,
centenas de milhares de cidadãos, de "todas as idades, orientações e
convicções", marcham pelas principais cidades portuguesas. Só em Lisboa
mais de 300 mil percorrem a capital.
Cada minuto, nova notícia
Nesse dia, o PSD anuncia que chumbaria as medidas de austeridade, que
considerou insuficientes. Sócrates alerta a oposição: "uma crise política"
só vai complicar a situação. Vinte quatro horas depois, a Moody's deixa
tombar em dois níveis, de A1 para A3, a notação da dívida portuguesa, e
mantém a evolução do país em perspectiva negativa.
Em Lisboa, Sócrates, que recebera luz verde do BCE e da UE para avançar
com o PEC IV, começa a perceber que a situação está tremida. Na Finlândia,
a campanha eleitoral faz-se à custa de Portugal.
23 de Março. O ambiente é já alucinante. Cada minuto, nova notícia. O
plano de austeridade é chumbado pela oposição, abrindo a porta à saída
de Sócrates. Num curto espaço de tempo, as três agências lançam o rating
de Portugal três níveis para baixo. A Fitch, que tinha assegurado que
não actuaria em caso de chumbo, é a primeira a anunciar a revisão em
baixa. A 25 de Março, a S&P atribui a Portugal a classificação de BBB, que
quatro dias depois irá reduzir para BBB-, um degrau acima de junk.
Depois de "metralharem" a República, olham para os bancos, para as empresas
públicas, para os grupos privados e repetem o movimento conjunto.
"As agências têm desempenhado um papel altamente negativo, e
este é um dos grandes falhanços dos governos e das autoridades que não
conseguiram regulamentar de modo eficiente a sua actividade", defende
Costa Pinto, presidente da CCAM. Tradução: para os bancos, os ratings
são importantes, pois os investidores, como os fundos de pensões e as
seguradoras, usam-nos para delimitar o tipo de produtos que adquirem e
decidir o capital que devem afectar para garantir o activo.
Augusto Mateus considerou mesmo "que houve um desmesurado teatro
político, absolutamente irresponsável" que ajudou "imenso [ao comportamento
dos mercados]".
A situação está prestes a descontrolar-se. O novo quadro político que resultara
do chumbo do PEC IV e a degradação contínua da dívida pública e
privada põem à prova o sangue-frio dos banqueiros portugueses.
A 30 de Março, o FMI publica um estudo de três economistas, Rabah
Arezki, Bertrand Candelon e Amadou Sy, onde concluem: "Os cortes de
rating têm um efeito de contágio, do ponto de vista estatístico e
económico, entre países e mercados financeiros, o que significa que os
anúncios das agências podem induzir a instabilidade financeira." Em
Dezembro de 2009, "a Fitch atribuiu ratings à Grécia e à Irlanda que tiveram
um impacto de 17 pontos base nos CDS [custo do seguro da dívida
contra default] gregos e de cinco pontos nos irlandeses".
Dois dias depois, a 1 de Abril, os juros das obrigações a 10 anos pulam
acima de 11%. A Fitch reduz de novo o rating de Portugal para BBB-, uma
queda de três níveis, pelo que o passo seguinte será fatal. E não fica por
ali, pois agita a ameaça: ou a República pede ajuda ou vai para "lixo".
Os alarmes fazem-se ouvir nos gabinetes dos banqueiros. O pacto entre
o Governo e o sector chega ao fim de vida. Conta um administrador de
um banco português que o agravamento da situação política, a deterioração
dos mercados, e o ambiente europeu (oposição finlandesa e alemã)
tinham criado um novo quadro e "deixara de ser da conveniência dos
bancos continuar a alimentar o processo de financiamento interno à revelia
do mercado".
Segunda-feira, 4 de Abril, os sites económicos revelam que uma comitiva
de banqueiros da CGD, BCP, BES e BPI se deslocara ao Banco de Portugal.
Nessa mesma noite, Santos Ferreira, o CEO do BCP, que sempre se
opusera ao resgate, defende na TVI que "Portugal devia pedir já um empréstimo
externo". Vinte e quatro horas depois, é a vez de Salgado se
deslocar ao mesmo estúdio, para aconselhar o mesmo. A partir da intervenção
de Salgado, conhecido por sustentar, muitas vezes, as teses do
primeiro-ministro, ficou tudo dito.
A 5 de Abril, a Moody's baixa o rating de Portugal para Baa1 e adverte
poder voltar a fazê-lo. Os juros da dívida soberana escalam a barreira dos
12%. Um ano depois da Grécia, e seis meses depois da Irlanda, Portugal
liga-se ao ventilador. São 20h de 6 de Abril quando Sócrates informa: "O
Governo decidiu dirigir à União Europeia um pedido de ajuda financeira."
A UE e o FMI dizem-se preparados para entrar em Portugal. Sócrates
demite-se e o Presidente convoca eleições. O programa da troika irá
agora ser aplicado pelo Governo de coligação liderado por Pedro Passos
Coelho. Mas nem a ajuda externa, nem a maioria parlamentar que saiu
das últimas eleições acalmam os mercados.
Constâncio aconselha prudência: "Há que ser muito prudente na análise
às diversas soluções, [pois] existem formas de envolvimento de privados
que não requerem algumas formas de haircuts [redução do valor nominal
das obrigações]."
"As agências de notação estão a considerar esta hipótese [reestruturação
da dívida e um alargamento do prazo de pagamento] de forma muito
crítica," afirmou à Bloomberg Erik Berglof, do BERD, que se coloca nas
mãos das raters: qualquer solução não pode ser considerada pelas agências
como de incumprimento.
Para Jacinto Nunes, "as raters têm interesses indirectos e, quando atacam
Portugal, estão a atacar a moeda única". Joe Berardo concorda:
"Como querem manipular [o euro], atacam os países mais fracos, como
aconteceu com a Grécia, dando-lhes bad ratings, e depois com a Irlanda.
Agora é Portugal, depois será a Espanha e já se fala da Itália."
Fim do euro?
O ex-ministro das Finanças conclui: " As agências arruínam um país e,
mais do que um país, atacam a UE. É preciso não esquecer que são todas
anglo-saxónicas e os americanos nunca viram com bons olhos o euro,
porque é uma moeda concorrencial ao dólar. Há países do Golfo e a
própria China que já admitiram usar o euro como meio de pagamento."
O que se vai passar? Berardo responde: "O euro vai começar a descer rapidamente
e aí vai haver quem faça lucros substanciais. Se dentro de um
mês, ou dois, se confirmar um incumprimento ligeiro na zona euro, não
ficaria surpreendido. Mas que vai acontecer vai." Cenário que uma fonte
ligada ao euro-sistema, inquirida pelo PÚBLICO, desvaloriza: "Está fora
de questão a falência do euro, mas admito que algo se esteja a passar
nos mercados." O resto é especulação.
Em 2010, a Moody's aumentou os salários dos gestores. O vencimento
anual do seu CEO, Raymond McDaniel, disparou 69%, para 6,5 milhões de
euros, e o resto da sua equipa recebeu mais 60% do que em 2009. O
prémio de MacDaniel aumentou 157%, com a justificação de que "ajudou
a restaurar a confiança nos ratings da Moody's Investors Service, ao elevar
o conhecimento sobre o papel e a função das classificações". O Congresso
dos EUA já colocara, entretanto, a Moody's, a S&P e a Fitch entre
os principais culpados pela crise financeira que afectou a vida de milhões
de pessoas.
Três anos depois da crise hipotecária ter eclodido nos EUA, numa nota
dirigida aos seus accionistas, já este ano, o CEO da Moody's fez cálculos:
"A regulação nos EUA abrandou, o que foi bom para a actividade. Esperamos
que as condições de mercado continuem favoráveis em 2011."
O futuro não será inesperado.