O vice-almirante que vacina
o país nasceu em Moçambique e fugiu com os pais para São Paulo a 25 de novembro de 1975. Passou mais de 800 dias da sua vida fechado em submarinos*
Margem de erro: zero. Nível de stresse: máximo. Era preciso decidir
rapidamente, com sangue-frio e de uma só vez. Tinha apenas 20 minutos para
salvar o submarino e os homens, enquanto a água inundava o compartimento a
um ritmo infernal. Assim que as máquinas fossem alagadas, o “Delfim”
morria, tornava-se pesado e desaparecia para sempre no fundo do
Mediterrâneo. Mandou os 53 homens da guarnição prepararem os procedimentos
para abandonarem o navio e pediu para ficar sozinho na ré, a analisar o
desastre. “Preparem-se e avisem Lisboa que estamos com um problema grave!”
Fez uma marca para ver quanto tempo demorava a água a subir e calculou:
eram só aqueles 20 minutos... Um engenheiro tinha mergulhado até à zona da
fissura e concluído que as bombas já não tiravam água suficiente: “Não
estamos a conseguir!” Com a tripulação instável, Henrique Gouveia e Melo, o
comandante, tomou uma decisão interior que o acalmou. “Aconteça o que
acontecer, não abandono o navio. Prefiro morrer aqui do que ter de viver
para justificar a perda do submarino.” Ainda lhe atravessou o espírito a
história de um comandante da Marinha portuguesa, que certa vez abandonou o
posto e foi forçado a voltar para bordo porque o navio acabou por não
afundar. Ele não passaria por vergonhas dessas.
É um racionalista, um matemático que desde miúdo se diverte a estudar
física. Talvez isso o tenha salvo. Quase por instinto, lembrou-se de uma
manobra tão rara e hipotética que nunca a treinava: fechar o submarino —
que na realidade é um tubo estanque dividido em cinco compartimentos — e
aspirar o ar de fora para o interior, de modo a tornar o navio numa gigante
câmara hiperbárica: com maior pressão do ar, a água deveria começar a ser
empurrada para sair, em vez de entrar. Funcionou. Salvou-se a guarnição e
salvou-se o navio. “Foi talvez a situação mais complicada que vivi”,
recorda hoje, aos 60 anos, o vice-almirante Gouveia e Melo,
coordenador da *task
force *da vacinação, e o oficial da Marinha com mais horas de navegação e
de imersão submarina: 31 mil horas de navegação e mais de 20 mil debaixo do
mar (o que dá 2,3 anos fechado dentro de uma cápsula). É um operacional. Um
duro.
*LIDERANÇA* “Os títulos têm o poder e a responsabilidade associados.
Ninguém tem poder nas Forças Armadas sem ter as responsabilidades”, diz
Gouveia e Melo
Entrou em meados de dezembro do ano passado para número dois da equipa da *task
force* que tem como missão vacinar os portugueses e com o objetivo alcançar
a imunidade de grupo em relação à covid-19 este verão. Tornou-se uma
celebridade de camuflado verde, coisa rara em Portugal quando estão em
causa militares, para combater não um Exército ou uma Armada, mas um vírus.
Em fevereiro, com avanços e recuos no processo, escândalos de vacinações de
políticos e autarcas, Francisco Ramos, o coordenador da equipa, demitiu-se
após somar mais uma polémica com vacinações prioritárias, desta vez no
Hospital da Cruz Vermelha, onde ele próprio presidia à comissão executiva.
Quem ascendeu ao comando? Um militar desconhecido da opinião pública,
intolerante face a facilitismos e capaz de discutir estatística ou
derivadas integrais com peritos e epidemiologistas. “Não me atrevo a fazer
uma avaliação”, diz ao Expresso Francisco Ramos, o antecessor de Gouveia e
Melo, “mas parece que as coisas estão a correr muito bem e sinto orgulho em
ter colaborado nos primeiros dois meses de trabalho”, reconhece.
Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo tornou-se um mito vivo da
esquadrilha de submarinos, não só pela sua conhecida dureza mas por ter
como objetivo passar dos limites — “se uma pessoa dá 10 eu peço 12, se dá
12 vou pedir 14”, chegou a assumir recentemente ao Expresso numa reportagem
sobre o processo de vacinação. Influenciado pelos estereótipos da II Guerra
do filme “Das Boot”, sobre um submarino alemão, no 4º ano da Escola Naval,
decidiu-se pela arma marítima de combate por excelência: “Queria fazer uma
carreira com esforço”, para que nada lhe “apontassem no futuro”. Escolheu a
vida mais difícil, andar semanas fechado dentro de um casulo sem duche, a
lavar-se com toalhetes de bebé, onde 50 homens partilhavam apenas duas
casas de banho, e onde em cada cama rodavam três militares por turnos (nos
submarinos antigos, todos dormiam em regime de cama quente, menos o
cozinheiro e o comandante). Para ele, navegar nos navios de superfície era
uma limitação, não lhe davam o estímulo de passar para uma terceira
dimensão: a da profundidade.
Em 1996, teve mais uma das suas ideias. Os velhos submarinos da classe
“Daphné”, de construção francesa e usados por Portugal entre 1968 e 2010,
tinham um recorde também francês: 30 dias seguidos no mar. Ele propôs ao
comandante da esquadrilha chegar aos 31. Em Portugal, o recorde eram apenas
18 dias. “Não foi bem pelo recorde”, justifica Gouveia e Melo ao Expresso.
“O que me passou pela cabeça é que o submarino era o último refúgio de
defesa do país em caso de crise. Enquanto um submarino estivesse a navegar,
nunca haveria uma frota inimiga no mar, o que dava mais tempo de negociação
ao Governo.” Era uma questão estratégica. Como tinha agendadas duas missões
de 15 dias praticamente seguidas, pediu autorização para fazer tudo de uma
só vez ao comandante da esquadrilha — vice-almirante Gaspar, pai de
Patrícia Gaspar, a atual secretária de Estado da Administração Interna e
ex-porta-voz da Proteção Civil durante os fogos de 2017. Foi aprovado. A
guarnição foi voluntária: quem queria passar o mês seguinte fechado num
charuto debaixo de água sem falar com a família? Chegaram a ter 56 homens
embarcados (naqueles submarinos só havia homens, nos novos já há mulheres).
“Foi um desafio logístico”, recorda ao Expresso Miguel Silva Gouveia,
capitão-de-mar-e-guerra na reserva, que participou na missão como chefe de
serviço de navegação e que fez quase toda a carreira comandado por Gouveia
e Melo. “Mas também foi uma forma de ver a reação das pessoas num ambiente
extraordinariamente hostil.” Pela primeira vez, improvisaram dois chuveiros
de água salgada no pequeno compartimento onde se lavavam as louças da
cozinha, e cada submarinista recebia duas garrafas de litro e meio de água
doce por semana para tirar o salitre no fim do duche, lavar os dentes ou
fazer a barba. O “posto a vante”, onde dormiam as praças, encheu-se de
víveres e de água, de modo que dificilmente os militares podiam andar
direitos. A comida fresca durou uma semana, o pão congelado aguentou 15
dias, a maior parte das refeições era liofilizada e os últimos dois dias
foram passados a comer rações de combate. Uma epopeia.
*“**Aconteça o que acontecer, não abandono o navio. Prefiro morrer aqui do
que ter de viver para justificar a perda do submarino”, pensou no momento
mais crítico da carreira*
Quase sem combustível, quando desembarcou no Arsenal do Alfeite havia um
arraial montado, com balões a enfeitar, a banda da Armada a tocar marchas,
o chefe do Estado-Maior e as televisões. Gouveia e Melo achou “demais”.
Irritou-se, foi ao balneário tomar os seus dois ou três banhos para tirar o
cheiro a submarino, seguiu para casa e nem aos jornalistas falou. “Não
perceberam. Gosto de fazer coisas difíceis, mas as manifestações de apreço
não me interessam. Queria chegar em silêncio, atracar, beber um café, tomar
os banhos e ir para casa.” Quando termina uma missão difícil, começa a
pensar na outra.
O homem que pôs o processo de vacinação sobre carris, apesar da imagem de
competência, não é consensual na Marinha: tem os seus detratores, é visto
como um alguém que não olha a meios para atingir os objetivos, mesmo que
tenha de levar os outros à exaustão, é considerado ambicioso, mas
dificilmente chegará a chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), porque — se
o calendário se cumprir — passa à reserva antes do fim de mandato do atual
CEMA, almirante Mendes Calado.
“Um submarinista é um gajo duro”, defende-se. Ele nem era de cultivar
aquela coisa dos submarinistas levarem uns ‘mimos’ para partilharem nos
primeiros dias, um queijo ou um chouriço, um doce, antes que o cheiro a
óleo, metal e suor tomasse conta de tudo ao fim de uns dias de navegação.
“Não os censurava e até comia, mas acho que como o corpo precisa de
sofrimento para se tornar atlético, devíamos fazer as coisas sem paliativos
e sorver a experiência na totalidade para nos prepararmos para o futuro.”
Nem a mulher se ia despedir dele à doca quando saía nas missões, nem ele
lhe dava uma data certa de regresso. Voltava quando o submarino voltasse,
era assim. Pode ter a ver com educação e com tudo aquilo por que passou até
estabilizar na Marinha. O primeiro casamento acabou por não resistir a esta
vida de marinheiro das profundezas.
*O VACINADOR-MOR DA REPÚBLICA*
À frente da *task force* de vacinação desde fevereiro, Gouveia e Melo está
concentrado em “acabar bem” esta missão porque sabe da sua importância para
“todos os portugueses e também para as Forças Armadas”. O atraso dos
laboratórios no envio das doses para Portugal tem sido o maior obstáculo do
seu mandato. Mas também a desorganização de alguns centros de inoculação.
Recentemente, a pedido do presidente da Câmara de Sintra, deslocou-se
pessoalmente a um centro de vacinação em Monte Abraão, forçou alterações
nas salas, nos procedimentos e no contacto com a população.
No início de junho, foi homenageado pela Ordem dos Médicos, que lhe
ofereceu um submarino feito à mão por um profissional de saúde. O
bastonário Miguel Guimarães descreve Gouveia e Melo como “um verdadeiro
líder” e “um homem corajoso”, o tipo de perfil de que Portugal “precisava
numa crise como esta”. O vice-almirante é “quem melhor comunica” no país,
acrescenta o bastonário ao Expresso — na verdade, também se treinou como
relações públicas da Marinha, cargo que exerceu durante dois anos quando o
concurso para a compra dos submarinos fazia manchetes nos jornais e Paulo
Portas era ministro da Defesa. Além da “boa capacidade de organização” e da
“disciplina férrea”, Gouveia e Melo “sabe ouvir e envolver as pessoas”,
descreve Guimarães.
Mesmo tendo saído do cargo sob uma enxurrada de críticas, o ex-governante
socialista Francisco Ramos, antecessor de Gouveia e Melo na
coordenação da *task
force*, destaca-lhe o “rigor e a competência” assim como o “espírito de
missão”, e garante não ter vivido choques entre a cultura civil e da função
pública e a dos militares: “Não me parece que tenha havido choques. Houve
complementaridade entre as várias culturas na *task force* e esse aspeto é
o fator que justifica o sucesso na concretização do plano”, diz ao
Expresso. Se ficou alguma animosidade, não transparece.
“Para não me deixar perturbar pelo processo, foco-me todos os dias no
essencial”, explica Gouveia e Melo. “A essência da minha missão é resolver
um problema. E esse foco desliga-me muito das outras preocupações.” Não tem
sido sempre fácil, por vezes faltam-lhe os meios para resolver os
problemas. E concede ser “um bocado ansioso”. Tirando isso, dorme bem todos
os dias: “Como adormeço muito cansado, adormeço imediatamente.” Mas se for
preciso, mostra os dentes. Por “coisas que não aconteceram”, por “pessoas
que dizem que fizeram uma coisa e não fizeram”, por quem “é muito
inteligente em casa mas finge-se de parvo quando é para trabalhar para o
Estado”. “Esse tipo de gente de vez em quando vê-me a mostrar os dentes”,
atalha.
Foi sempre assim ao longo da sua carreira, garante, admitindo ter “muitos
detratores” na Marinha. “Sempre fui muito exigente no meio português, que é
pouco exigente por natureza e por cultura”, o que cria de imediato “uma
singularidade”. Mesmo para o padrão das Forças Armadas diz-se “muito
exigente” e, às vezes, as pessoas queixam-se, confundindo a sua exigência
com falta de humanidade ou empatia. Estão erradas, assegura: “Tenho
relações humanas muito fortes com os meus colaboradores.” O que não tem é
empatia para malandros. “Aí sou mesmo mau. Quando um malandro começa a
fazer malandrices, sou conhecido por não ser nada simpático.” E é então que
mostra os dentes. Não precisa de uma “equipa de Ronaldos”, de “gente de
primeiras águas”, trabalha com qualquer pessoa desde que esta dê “o máximo
que pode dar”. Se for honesta, trabalhadora e dedicada, está “sempre de
bem” consigo. Quem se deu mal na sua carreira foram mesmo os malandros,
insiste, “esses deram-se francamente mal”. Quanto aos detratores, garante
que não lhe ocupam o espírito. “Desde que não atrapalhem o percurso que
tenho de fazer, passam a ser indiferentes. E, por isso, a minha ânsia
reflete-se mais em mim e na necessidade de estar permanentemente a
encontrar novas soluções. Isso também é o meu alimento.”
Quem trabalhar com ele corre o risco de chegar a casa de rastos. “O pessoal
que andava com ele estava lixado. Exigia o máximo. Em missão não perdoava,
mas não perdoava primeiro a ele próprio. Quem quisesse fazer o mínimo não
se dava bem. Se fosse preciso não dormir, ficava sem dormir até cair para o
lado”, lembra o vice-almirante Conde Baguinho, dos tempos em que o
comandou. “Dedica a vida à missão que tiver em cada momento”, reforça o
capitão-de-fragata Farinha Alves, atualmente comandante da esquadrilha de
submarinos. Durante o processo de aquisição dos novos submarinos, lembra-se
de o ver “começar às oito da manhã, trabalhar até às 20h, meter-se num
avião para discutir coisas com os alemães, e regressar para a esquadrilha
em vez de ir para casa”. Nas equipas que lidera, ele torna-se “a
referência”, mas “nunca exige aos outros aquilo que ele não exige primeiro
a si próprio”. O ex-CEMA Macieira Fragoso reconhece que o atual responsável
pela vacinação “não é uma pessoa amada por todos, é muito exigente, mas
toda a gente o respeita pelo que ele sempre conseguiu”.
Distingue entre o que gosta e o que tem de fazer. Neste momento o que tem
de fazer é completar a vacinação dos portugueses. O que gosta — sempre — de
fazer é ser marinheiro. Se for necessário, aceitará um eventual convite
para revacinar o país? “Acho que alguém tem de continuar o meu trabalho.
Nenhuma organização deve estar presa a um homem. Ao mesmo tempo que
desenvolvo respostas e soluções, é uma obrigação minha ir preparando a
organização para sobreviver sozinha. Não quero ser o tipo imprescindível. O
cemitério está cheio de imprescindíveis.” Além disso, esta é uma missão de
exceção e da área da saúde. Ainda que não pense “noutra coisa neste
momento”, esta é uma missão para gente da saúde, insiste. E ele não foi
para médico nem enfermeiro. É militar. Daí que anseie que, “mais tarde ou
mais cedo”, este processo encontre resposta nas “estruturas normais do
Ministério da Saúde”. Quanto ao seu futuro, gostaria de estar envolvido
numa “missão difícil e interessante”, se possível ainda mais difícil e
interessante do que as que já realizou. Andou em lanchas, comandou dois
submarinos ao mesmo tempo — o “Barracuda” e o “Delfim” —, passou para os
navios de superfície, os “alvos”, como lhes chamam os submarinistas, e
comandou a fragata “Vasco da Gama”, chefiou a esquadrilha dos submarinos,
foi comandante naval e chefe de gabinete do CEMA e foi adjunto para o
Planeamento e Coordenação no Estado-Maior-General das Forças Armadas.
Falta-lhe ser chefe do Estado-Maior da Armada, mas só poderá ser
considerado como uma hipótese caso o atual CEMA não termine o mandato.
“Em terra somos mesmo pequenos”, declara. Um país pequeno, localizado no
extremo sudoeste da Europa, que sofre de “um complexo de província”. No mar
é o oposto: “Somos gigantes. É o que nos dá importância geoestratégica.”
Mas Portugal insiste em olhar só para a terra, lamenta. Gouveia e Melo teme
que o país perca o acervo estratégico e económico do mar. “No mar é que
somos grandes”, insiste, algo que foi percebido rapidamente por D. João II.
Aliás, para ele só houve dois reis em Portugal: “D. Afonso Henriques, que
teve a ideia inicial, e D. João II, que deu uma nova ideia estratégica a
este Portugal, que saiu da fronteira de Espanha.” Caso contrário, seríamos
“um país encurralado”.
*QUELIMANE, 25 DE NOVEMBRO E SÃO PAULO*
Nasceu em Quelimane, capital da província moçambicana da Zambézia, virada
para o oceano Índico, a 21 de novembro de 1960. É escorpião, signo de água,
o elemento onde passou a vida, segundo filho do casal. “Em África
trabalhava-se muito mas havia uma liberdade que não existia em Portugal”,
conta. Não esconde que a sua família vivia numa situação de privilégio, mas
também não era menos verdade que tinha de vencer constantes obstáculos. As
distâncias eram muito grandes, e o sistema encarregava-se de puxar pelas
pessoas e de as obrigar a ser desenrascadas. Como ele: “Era um miúdo muito
desenrascado e fazia pela vida.” Caso contrário, não teria como resolver os
problemas, era necessário fazer um mínimo de planeamento. “Não tínhamos
coisas acessíveis ali ao lado.” O que não havia era preciso importar e, por
vezes, tratava-se de uma importação específica de um determinado
equipamento para uma função concreta. Ao conviver na escola com “miúdos
muito mais velhos” e para “não sofrer *bullying* e essas coisas”, tinha de
ser desenvencilhado. Nunca gostou muito de futebol por ser “muito comprido
e desajeitado”, mas praticava natação e vela. Nadava muito bem de bruços e
chegou a ganhar alguns prémios, na vela começou com oito anos. Também se
destacou no ténis de mesa. Praticou estes desportos durante muitos anos,
incluindo na Escola Naval. A natação até muito mais tarde. Depois a vida
profissional acabou por se impor.
*“**Um submarinista é um gajo duro”, diz Gouveia e Melo. “Quando um
malandro começa a fazer malandrices, sou conhecido por não ser nada
simpático**”*
Não é pessoa de ter muitos *hobbies* — ou melhor, os que tem são “mais
diferenciados” do que os da maioria das pessoas. “Quando estou stressado,
leio matemática ou física. Gosto muito de computação e do movimento ‘*do it
yourself*’, de construir coisas. Quando era pequeno já era um engenhocas”,
explica. Sempre foi curioso. Quando tinha um problema, corria para os
livros de matemática, física, computação, “o que fosse necessário” para o
resolver. Assim foi ao longo de toda a vida. Aliás, os seus passatempos
tiveram sempre alguma aplicação na profissão. Criou um centro de inovação e
experimentação operacional quando foi comandante naval. Divertia-se com
mais quatro pessoas a inventar traquitanas para derrubar navios a baixo
custo. “Uma vez esteve cá um *destroyer* inglês de última geração, e
provámos que as defesas aéreas eram vulneráveis a drones feitos por nós”,
diz, entre risos.
O pai era advogado, tendo também sido temporariamente juiz. Quando saíram
de África, tinha ele 14 anos, o pai estava “irritado com o sistema”. Na
metrópole, eram vistos como “os colonialistas”. Acabaram por emigrar para o
Brasil. “Já tínhamos sofrido bastante em África. Perdemos tudo, todas as
propriedades.” A família receava que Portugal mudasse “para um sistema de
Leste, para o comunismo duro”. “O meu pai achou que não queria viver num
país assim”, recorda, mas acabaram por sair precisamente a 25 de novembro
de 1975, o dia da contrarrevolução. O navio já ia a sair da barra quando o
pai terá confessado à família: “Acho que me enganei e devia ter esperado
mais dois ou três dias.” Como cidade, São Paulo, onde atracaram, era uma
cidade gigantesca, assim como Quelimane era gigantesca na extensão
territorial. Em África a natureza obrigava-os a serem próximos uns dos
outros para se defenderem. O Brasil era um formigueiro humano, uma selva
urbana, e viviam “em constante perigo do crime”. Acabaram por se habituar e
ganhar defesas. Em São Paulo e em Quelimane “os sistemas de sobrevivência
eram os mesmos”. “Nós, que vínhamos de África, tínhamos *skills* de
sobrevivência tão apurados que depois nos ajudavam a sobreviver num outro
ambiente”, resume.
Henrique era “um marrão”, mas o pai proibia-o de estudar tanto. Estudava de
manhã num colégio, que era a escola oficial, e à tarde inscreveu-se num
colégio particular “para ir avançando nos estudos”. Tinha 11 horas de aulas
por dia e depois o resto do tempo ainda era para estudar. “O meu pai
obrigava-me a apagar a luz à uma da manhã e não gostava que eu estudasse
tanto”, recorda.
De regresso a Portugal, entrou na Marinha aos 19 anos. Sentiu que a sua
maturidade era maior do que a dos seus camaradas de curso. “Era muito mais
velho mentalmente do que os outros. Não tinha paciência para certas
brincadeiras.” Mas a maturidade é muito acelerada na Escola Naval, porque o
sistema militar pretende dar autonomia e capacidade de liderança na
formação de oficiais.
*GUERRA É GUERRA: “CUIDADO, O MELO ESTÁ NO MAR!”*
É duro, sim, é um dos principais defeitos que lhe apontam, mas também uma
das qualidades, depende do contexto. Traça um rumo, vê um objetivo e não se
desvia, mesmo com um mar de circunstâncias alterado. “Vai sempre ao limite
porque é extremamente determinado”, diz Silva Gouveia, que chegou a ser
imediato do vice-almirante (um imediato é o segundo comandante de um
navio). É inventivo, pensa “fora da caixa”, descrevem várias fontes ao
Expresso. “Tem uma grande capacidade de inovar”, precisa Silva Gouveia.
“Como é suposto um submarino estar debaixo de água para ninguém o ver, uma
vez, num exercício internacional, fez superfície, pôs luzes de pesqueiro e
aumentou a velocidade para apanhar um navio de guerra e eles não
repararam.” José Conde Baguinho, vice-almirante submarinista na reforma,
comandou Gouveia e Melo enquanto jovem, e lembra-o com “uma grande
imaginação, uma capacidade imaginativa brutal”. Para ele, “não há
impossíveis e assume qualquer tarefa por difícil que pareça, enfrenta
aquilo como se tivesse a certeza que vai resolver”. Na década de 1980,
recorda Baguinho, já sabia de informática mais do que todos os outros e
quando ainda ninguém falava de internet já ele procurava informação sobre
esse futuro que havia de revolucionar as nossas vidas.
*“Parece que as coisas estão a correr muito bem e sinto orgulho em ter
colaborado nos primeiros dois meses de trabalho”, *
*diz Francisco Ramos, o primeiro coordenador da task force*
Sempre no limite, “explorou os submarinos ao máximo” e isso foi notado
pelas outras Marinhas. “Se falar com oficiais mais antigos, franceses,
espanhóis ou ingleses, todos sabem quem é o Melo”, conta Farinha Alves. “Na
NATO ele era temido”, confirma ao Expresso o almirante Luís Macieira
Fragoso, ex-chefe do Estado-Maior da Armada. “Só me apercebi disso quando
ele era meu chefe de gabinete e um dia embarcámos num porta-aviões
americano, e encontrámos um oficial francês, que nos disse: ‘Tu é que és o
Melo? Então és aquele de quem se dizia:* Beware, Melo is at sea!...’*”
(Cuidado, o Melo está no mar!). Levava a competição a sério, e se era para
haver guerra, ele dava-lhes guerra, mesmo num calhambeque desatualizado dos
anos 60: certa vez, num exercício onde estavam nove submarinos, dos 147
ataques realizados, o de Melo contabilizou 117. “Uma vez, os franceses
julgavam que nos iam dar uma lição com os submarinos nucleares e levaram
6-0. Mais tarde, foram eles a planear o exercício, criaram-nos
dificuldades, e mesmo assim ficou 3-3. Não compreendiam como eu fazia
aquilo”, recorda o próprio.
Era combativo, não se limitava a fazer um ou dois ataques aos navios de
superfície, como os comandantes dos países que operavam as plataformas mais
modernas. Com submarinos obsoletos, ter bons resultados nos exercícios
conjuntos “era uma forma de termos aceitação nos outros países da NATO
quanto à nossa capacidade submarina”, contextualiza Silva Gouveia. “Na
minha opinião, ele é o pai dos novos submarinos. Se não fosse ele, não
haveria submarinos novos nem com a qualidade que têm.” Fez parte dos grupos
de trabalho e discutia pormenores técnicos com os engenheiros dos
fabricantes e arrasava os argumentos dos concorrentes alemães ou franceses
se quisessem vender-lhe “peixe podre”.
Quando a Marinha recebeu os dois novos submarinos da classe “Tridente”,
Gouveia e Melo era o comandante da esquadrilha, mas acabou por ter de
acumular a liderança em terra com a chefia do novo navio. O oficial que
estava a preparar-se há anos para comandar e testar o novíssimo “Tridente”
teve o diagnóstico de um cancro galopante e morreu em dois meses. Terá sido
um dos momentos que mais afetou emocionalmente a esquadrilha e também o
próprio Gouveia e Melo. Na viagem para Portugal, quando foi buscar o
submarino à Alemanha, o comandante percebeu que a torre do submarino
vibrava. “Os alemães diziam que não havia problemas”, lembra. “Se continuam
com isso, vou partir-vos a torre”, ameaçou. E assim fez: com o Atlântico a
bater forte, levou a plataforma ao máximo, afinal estava em testes e o
navio dentro da garantia, e passou o Bugio em direção ao Alfeite com a
torre pendurada e o submarino aberto. “Não só o fabricante assumiu a
reparação do ‘Tridente’ como modificou o ‘Arpão’”, a unidade que viria a
seguir, e os submarinos que construíram depois. As alterações custaram
milhões de euros aos alemães.
*SEM OBSESSÃO DE MORRER VELHO*
Além de determinado, confessa-se obcecado com o que tem de fazer. Trabalha
o que tiver de trabalhar, fá-lo com prazer e sem denunciar cansaço. Isso já
teve consequências na sua saúde. Mas também espera que ninguém deseje viver
eternamente porque “ainda não houve ninguém que conseguisse provar isso”. O
problema de saúde também esteve relacionado com o stresse, uma constante na
sua carreira. A certa altura, depois de o “Barracuda” ter sofrido um
acidente grave, foi apontado para acumular o comando dos dois submarinos em
simultâneo. “Não foi fácil”, reconhece ao Expresso. Atracava de uma missão,
a sua mulher de então levava-lhe roupa lavada, tomava banho, vestia uma
roupa limpa “e ia para o mar outra vez”.
Em 2002, sofreu um choque elétrico e cinco anos depois teve de colocar um
*pacemaker* (chegou a fazer de cobaia para ver como é que o aparelho reagia
ao magnetismo da carga elétrica no submarino e mandou as conclusões para o
fabricante). Não sabe se o acidente foi a causa principal, mas assegura que
está “ rijo para as curvas”. Até diz aos camaradas que aconselha um
*pacemaker* a toda a gente. O acidente aconteceu já no final da sua
carreira nos submarinos ao cair numa operação com um helicóptero.
Normalmente, o cabo elétrico pousa na água para fazer a descarga, que não
terá sido bem sucedida, e ao agarrar o cabo apanhou um choque “fortíssimo”.
Não chegou a perder os sentidos mas ficou paralisado.
E o acidente levou-o a reequacionar algo na vida? “Não faço reavaliações de
coisas que não me resolvem nada. Não tenho a obsessão de morrer velho, de
morrer a olhar para o sol e de ver os dias a passar. Isso até me deixa
profundamente deprimido, portanto espero que me dê qualquer coisa ainda no
vigor da minha idade, é mais fácil, e que seja rápida.” Diz não se
preocupar com isso, até porque teve “uma vida tão plena, cheia de tantas
coisas”. “Quando a vida me carimbar o passaporte, vou de certeza contente.”
*“O pessoal que andava com ele estava lixado. Exigia o máximo”, *
*conta o vice-almirante Conde Baguinho, que o comandou*
A sua referência é ele próprio no dia anterior. Só se compara consigo, só
concorre consigo. É “muito autorreflexivo”, o que o ajuda a ter a
capacidade de olhar de forma crítica para si e, por vezes, até de “gozar”
com a sua posição, “como se saísse” do seu corpo e se visse de fora.
“Nenhum de nós é importante. Somos uma função num determinado momento da
história e num determinado local. As pessoas que se julgam importantes são
naturalmente parvas”, sentencia. Ainda assim, a estrutura das Forças
Armadas é muito hierarquizada, obedece a uma escala de importância. “Os
títulos têm o poder e a responsabilidade associados. Ninguém tem poder nas
Forças Armadas sem ter as responsabilidades” inerentes à função. E defende
que o poder só deve ser exercido “no estrito senso necessário para cumprir
com as responsabilidades, nunca para além dessa margem muito estrita”.
Uma das razões por que gosta de andar de camuflado é por ser prático. Mas
também por considerar que a luta contra a covid-19 é “uma guerra” e por ser
uma forma de os militares da *task force*, dos três ramos das Forças
Armadas, terem todos o mesmo uniforme. Não gosta de andar sempre com as
medalhas. Quando veste a camisa branca, de manga curta, da Marinha, usa uma
fita só com quatro condecorações. E que quatro medalhas são essas? “Nem são
as mais importantes na hierarquia das medalhas. Foram as que tiveram mais
significado por causa das pessoas que mas deram e que tenho em elevada
consideração.” Uma delas foi-lhe dada por Brites Nunes, que era o
comandante da esquadrilha de submarinos quando Gouveia e Melo saiu. Diz-se
o produto de mentores com que se foi cruzando. O vice-almirante Conde
Baguinho é outro desses exemplos: uma medalha atribuída por este tinha
“muito mais significado do que uma medalha dada pelo CEMA”.
*NEM CÃO NEM RUM*
E quando regressa a casa no fim de cada dia, o que encontra? Vive com a
segunda mulher, uma diplomata, tem dois filhos adultos que já não estão em
casa. Gouveia e Melo concede ser uma pessoa com a qual é muito difícil
conviver. “A minha mulher diz que vivo numa bolha e que afasto os outros.
Quem vive ao meu lado queixa-se muitas vezes de eu ser mais máquina do que
humano. Estou tão obcecado com a bolha que me abstraio um bocado das
relações que tenho”, reconhece. Passou a carreira num mundo à parte, o dos
submarinos, que muitas vezes se definem assim: “Há o mundo dos vivos, dos
mortos e o dos submarinistas.” Mesmo dentro da Marinha são gente diferente
dos “fragateiros”, a expressão pejorativa com que se referem aos
marinheiros de superfície. “É uma pessoa que, sendo muito profissional e
exigente, cria uma bolha em que é difícil entrar”, confirma o comandante
Paulo Vicente, um mergulhador que trabalhou de perto com a esquadrilha de
submarinos e que foi relações públicas da Marinha quando Gouveia e Melo era
chefe de gabinete do CEMA. “Se as pessoas passam a fronteira dessa bolha,
da parte profissional, entram no lado humano.” E o próprio Gouveia e Melo
reconhece que já foi mais duro, embora não se tenha tornado um “mole”.
Mas não é de esperar que se reflita nele o marinheiro rufia do rum ou que
toma o seu gin tónico ao fim da tarde para o quinino ajudar a prevenir a
malária. “Não bebe álcool”, diz o amigo Silva Gouveia. “Acho que nunca
ninguém o conseguiu pôr a beber.” Só Coca-Cola: “O encarregado da cantina
tinha de levar um carregamento só para ele.” E era dos poucos que não
cumpria uma tradição: quando um submarino imergia até à cota máxima, para
testar a estanquicidade do casco, o comandante dava ordem para se fumar um
cigarro. Ele aguentava a nuvem de fumo dos outros dentro daquele aquário,
mas também nunca fumou.
Não tem animais de estimação, mas já teve. “Neste momento, mal tenho tempo
para a minha mulher, quanto mais para animais de estimação.” Mas durante 14
anos teve uma cão de fila de São Miguel, “uma cadela muito dedicada e muito
protetora da família”. Chamava-se “Lucy”, e foi a sua primeira mulher, que
era inglesa, quem escolheu o nome. “As mulheres é que decidem tudo em
casa”, o que não mudou neste seu segundo casamento: “Ainda é assim agora,
claro.” A “Lucy” era uma cadela abandonada, usada para lutas de cães, e
“sempre demonstrou ao longo da sua vida um agradecimento eterno” por ter
sido recolhida.
Gouveia e Melo não gosta de falar de si e tenta fugir dos holofotes, o que
não tem sido fácil, tendo em conta as várias solicitações de entrevista que
recebe. “Não gosto de heróis. Incomoda-me ser importante porque importante
é o grupo. Tenho esperança de que em todos os sítios haja pessoas com o
espírito parecido com o meu e que estejam animadas a fazer as coisas.” E
diz que “este Portugal está órfão de um Sebastião, está sempre à procura de
um novo”. “É um traço psicológico do povo português. Mas o Sebastião está
dentro de nós, não temos de procurar por ele.” Que missão aceitará depois
desta?