Caros Marcelo Rebelo de Sousa, Eduardo Ferro Rodrigues, António Costa e Rui Rio, importam-se de acordar rapidamente para a realidade social, económica e financeira do país e tomar consciência da tragédia que nos atingiu?
Só tomando consciência da realidade que nos cerca é que poderemos começar a tomar medidas para a melhorar. Se nem sequer somos capazes de reconhecer a natureza da dimensão dos problemas que temos, não podemos esperar que se resolvam de forma sustentável e duradoura.
Os problemas que temos medem-se pela fome que já se vive em Portugal. Se não fossem as ajudas do Banco Alimentar, das misericórdias, das IPSS, das igrejas com destaque para a Católica, das câmaras municipais, das juntas de freguesia, dos autarcas e dos milhares de voluntários distribuidores e dadores, a situação social já se teria tornado explosiva em muitas cidades, vilas e bairros do país.
Os problemas que temos medem-se pelo elevado valor da ajuda pública (com dinheiro que o Estado não tem e para isso pede emprestado nos mercados financeiros), para compor o rendimento das famílias que tiveram de ficar em lay-off ou já perderam os empregos, bem como pelas moratórias aos impostos e às prestações aos bancos, que as famílias teriam de estar a pagar e que em breve irão voltar a pagar, juntamente com a parte acumulada desses pagamentos diferidos.
Os problemas que temos medem-se pelo índice de risco de falência de centenas de milhares de empresas nacionais, até agora mantidas com o regime de lay-off simplificado e pelo programa que o substitui, bem como pelas moratórias fiscais e bancárias de que ainda estão a beneficiar, mas que acabam em breve.
Os problemas que temos medem-se pelo gigantesco volume dos empréstimos bancários garantidos a 80 ou 90 por cento pelo Estado, que mais cedo ou mais tarde vão desencadear o acionamento dessas garantias por parte dos bancos, fazendo subir ainda mais a já descomunal dívida pública portuguesa.
Os problemas que temos medem-se pelo ritmo crescente de entrega de casas aos bancos por parte de milhares de famílias que já não conseguem suportar as responsabilidades dos empréstimos. E pelo número crescente de empresas que já registam incidentes de crédito, desde as mais pequenas falhas de pagamentos até à declaração de impossibilidade total de assumir as suas responsabilidades financeiras.
Os problemas que temos medem-se pelos alertas de cada vez mais especialistas sobre uma nova e profunda crise bancária que se está a formar em Portugal e por toda a Europa, podendo levar à acumulação de mais de 800 mil milhões de euros de crédito malparado, a curto, médio prazo.
O problema maior do país cabe numa frase simples: desapareceu 10 por cento do nosso PIB anual em 2020, e não há maneira de o voltar a recuperar por completo em 2021. A maior parte deste PIB era composto por exportações sob a forma de serviços de turismo prestados a estrangeiros, bem como transporte aéreo, restauração, organização de conferências e demais atividades associadas.
Esta parte do PIB desapareceu e não volta tão cedo, porque o mais certo é não ser possível acabar com os novos surtos e termos de enfrentar uma segunda vaga da pandemia antes de estar disponível uma vacina ou um novo tratamento rápido e eficaz.
Em consequência, aumentaram os apoios sociais distribuídos pelo Estado e baixaram drasticamente as receitas em impostos e contribuições para a segurança social. Em espelho invertido com o PIB, o défice das contas do Estado inchou que nem um balão e está prestes a rebentar numa nova crise de financiamento público.
Numa altura em que é urgente discutir formas de cooperação institucional e definir o que queremos coletivamente para recompor o perfil da nossa economia, chamando à mesma mesa Patrões, Sindicatos, Governo, Oposição, Deputados, Partidos, Universidades e Especialistas, para encarar o problema de frente, o que vemos?
Vemos uma taxa de desemprego artificialmente diminuída por regras contabilísticas inovadoras, enquanto baixa a população ativa e sobe exponencialmente a população inativa;
Vemos o saldo das contas externas do país a degradar-se rapidamente com a manutenção de um volume elevado de importações, enquanto as exportações caíram a pique.
Vemos vários setores da agricultura, agro-indústria, indústria transformadora e serviços, com estrutura empresarial pequena e média, a serem ultrapassados no acesso a fundos estruturais e a créditos bancários pelos grandes projetos da economia não transacionável e do compadrio com a política.
Vemos um plano para “salvar” a economia nacional encomendado a um especialista que pisca o olho à esquerda e à direita, ao setor publico e ao privado, quer apostar nas empresas do regime concorrencial, mas acaba por destacar a importância das grandes obras públicas, ferrovias, portos e plataformas logísticas;
Vemos um plano estratégico que, por ser tão abrangente e ambicioso, cria as próprias condições para nunca ser aplicado.
E vemos um Presidente da República, um Presidente do Parlamento, um primeiro-ministro, um ministro das Finanças e um líder da oposição aparentemente alheados da gravidade deste momento importantíssimo da nossa vida coletiva. Sendo que o advérbio de modo “aparentemente” comporta um sério problema nacional: seja real ou não, este aparente alheamento dos responsáveis políticos contagiou a sociedade portuguesa e eliminou o sentido de urgência em encontrar soluções rápidas para a crise social, económica e financeira em que estamos mergulhados.
Enquanto os mais altos responsáveis da nação não acordarem deste alheamento, vamos todos continuar adormecidos, deixando escoar o tempo mais precioso para preparar o futuro do país.
Apostar em produção nacional para substituir importações, desde bens alimentares a produtos de higiene, limpeza e segurança sanitária, equipamentos domésticos, equipamentos médicos, medicamentos e afins;
Apostar em mais exportações, desde mais produtos agroalimentares a moldes, máquinas e equipamentos industriais, componentes variados para a indústria, programas de software, assistência técnica, apoio administrativo e os mais variados serviços de trabalho à distância para outros países e mesmo outros continentes.
O que é necessário e urgente é um plano para substituir rapidamente o PIB que desapareceu e para compensar o gigantesco desacerto entre as despesas e as receitas do Estado.
2020 já vai ser um ano perdido. Não podemos entrar em 2021 sem termos definido a estratégia para colmatar dois défices gigantes: o das contas externas e o das contas públicas. Temos menos de quatro meses para delinear esse plano e para o pôr em marcha.
Uma urgência que não é compatível com a atitude pública visível dos mais altos responsáveis do país.
José Gomes Ferreira