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   MEMÓRIAS
  de um outro PORTUGAL Corria o ano da graça
  de 1962 (já lá vai meio século). A Embaixada de Portugal em Washington recebe
  pela mala diplomática um cheque de 3 milhões de dólares (em termos atuais
  algo parecido com € 50 milhões) com instruções para o encaminhar ao State
  Department para pagamento da primeira tranche do empréstimo feito
  pelos EUA a Portugal, ao abrigo do Plano Marshall. O embaixador
  incumbiu-me (ao tempo era eu primeiro secretário da
  Embaixada) dessa missão. Aberto o expediente,
  estabeleci contacto telefónico com a desk portuguesa, pedi para ser
  recebido e, solicitado, disse ao que ia. O colega americano ficou algo
  perturbado e, contra o costume, pediu tempo para responder. Recebeu-me nessa
  tarde, no final do expediente. Disse-me que certamente havia um mal-entendido
  da parte do governo português. Nada havia ficado estabelecido quanto ao
  pagamento do empréstimo e não seria aquele o momento adequado para criar
  precedentes ou estabelecer doutrina na matéria. Aconselhou a devolver o
  cheque a Lisboa, sugerindo que o mesmo fosse depositado numa conta a abrir
  para o efeito num Banco português, até que algo fosse decidido sobre o
  destino a dar a tal dinheiro. De qualquer maneira, o dinheiro ficaria em
  Portugal. Não estava previsto o seu regresso aos EUA. Transmiti imediatamente
  esta posição a Lisboa, pensando que a notícia seria bem recebida, sobretudo
  num altura em que o Tesouro Português estava a braços com os custos da guerra
  em África. Pensei mal. A resposta veio imediata e chispava lume. Não posso
  garantir a esta distância a exatidão dos termos mas era algo do tipo:
  "Pague já e exija recibo". Voltei à desk e comuniquei a
  posição de Lisboa. Lançada estava a
  confusão no Foggy Bottom: - não havia precedentes, nunca ninguém tinha
  pago empréstimos do Plano Marshall; muitos consideravam que empréstimo, no
  caso, era mera descrição; nem o State Department, nem qualquer outro órgão
  federal, estava autorizado a receber verbas provenientes de amortizações
  deste tipo. O colega americano ainda balbuciou uma sugestão de alteração da posição
  de Lisboa mas fiz-lhe ver que não era alternativa a considerar. A decisão do
  governo português era irrevogável. Reuniram-se então os
  cérebros da task force que estabelecia as práticas a seguir em casos sem
  precedentes e concluíram que o Secretário de Estado - ao tempo Dean Rusk -
  teria que pedir autorização ao Congresso para receber o pagamento português.
  E assim foi feito. Quando o pedido chegou ao Congresso atingiu implicitamente
  as mesas dos correspondentes dos meios de comunicação e fez manchete nos
  principais jornais. "Portugal, o país
  mais pequeno da Europa, faz questão de pagar o empréstimo do Plano Marshall";
  "Salazar não quer ficar a dever ao tio Sam" e outros
  títulos do mesmo teor anunciavam aos leitores americanos que na Europa havia
  um país (Portugal) que respeitava os
  seus compromissos. Anos mais tarde
  conheci o Dr. Aureliano Felismino, Diretor-Geral perpétuo da Contabilidade
  Pública durante o salazarismo (e autor de umas famosas circulares conhecidas
  ao tempo por "Ordenações Felismínicas" as quais produziam mais
  efeito do que os decretos do governo). Aproveitei para lhe perguntar por que
  razão fizemos tanta questão de pagar o empréstimo que mais ninguém pagou.
  Respondeu-me empertigado: - "Um país
  pequeno só tem uma maneira de se fazer respeitar: é nada dever a quem quer que seja". Lembrei-me desta
  gente e destas máximas quando há dias vi na televisão o nosso Presidente da
  República a ser enxovalhado pública e grosseiramente pelo seu congénere checo
  a propósito de dívidas acumuladas. Eu ainda me lembro de
  tais coisas, mas a grande maioria dos Portugueses de hoje nem esse consolo
  tem.  | 
 



